O legado de luta e esperança
  1. A Vida de Darcy Ribeiro

Darcy Ribeiro é um dos grandes personagens brasileiros. Produziu uma extensa obra, ocupou diversos cargos políticos, passou longos períodos convivendo em comunidades indígenas, foi exilado, professor, escreveu romances, diagnosticado com câncer obteve permissão de retornar ao Brasil, dedicou-se ao redesenho do ensino nacional. Foi, em suas próprias palavras, um homem de muitas peles. Nesta última coluna do ano de 2023 – um ano de luta para reafirmar a vigência de um Estado Democrático de Direito – eu gostaria de relembrar um pouco de Darcy Ribeiro, um entusiástico defensor da construção de um Brasil democrático.

Enquanto Ministro da Educação do governo João Goulart, Darcy presenciou o golpe militar de 1964 e teve seus direitos políticos nominalmente suprimidos pelo Ato Institucional n. 1 (AI-1) de 10 de abril de 1964. Na data de sua publicação, Darcy já estava no Uruguai, pois antecipando sua prisão, empreendeu fuga em um episódio notável, narrado por Waldir Pires, seu companheiro na empreitada. Tão logo desembarcaram no país vizinho, Darcy se apresentou a um sargento da polícia uruguaia como perseguido político em busca de asilo. No dia seguinte, foi procurado por Mário Cassinone, reitor da Universidade da República do Uruguai, para ocupar o cargo de professor de antropologia.[1] Embora tenha retornado brevemente ao Brasil 1968, para ser preso e solto, retomou seu exílio na Venezuela e dedicou-se a repensar o sistema universitário na América Latina:

“Fracassando nessa luta pelas reformas [no Brasil], eu me vi exilado por muitos anos e vivi em diversos países. Entretando, minha pele de proscrito foi mais leve do que se poderia supor. Nela pude ver meu país em conjunto, como só se vê olhando de fora. Comparando, nela pude exercer-me largamente como educador e como político, aprendendo muito. Meu ofício, naqueles anos, foi o de professor de antropologia e, principalmente, reformador de universidades. Disto vivi. Propus reformas para a Universidade da República do Uruguai, para a Universidade Central da Venezuela e para o sistema universitário peruano. Ajudei a reestruturação da Universidade de Argel, elaborei o projeto básico de implantação da Universidade Nacional da Costa Rica e propus, para a Universidade Nacional Autônoma do México, uma Faculdade de Educação e Comunicação.”[2]

Darcy retornou ao Brasil em 1974 ao ser diagnosticado com câncer pulmonar. Conta que obteve a autorização do regime militar para regressar pela expectativa de que ele morresse em breve. Essa expectativa foi frustrada em, em 1975, retomou seu exílio, desta vez no Peru. No ano seguinte, 1976, retornou definitivamente ao Brasil e retomou sua vida dentro da política nacional. Foi em razão do tempo de exílio e da visão externa que teve do Brasil que Darcy passou a engajar em uma forma de teoria do Brasil que culminaria em seu mais famoso livro no campo da sociologia, O Povo Brasileiro.

  1. Os Brasis em Darcy

No final de sua vida, diagnosticado novamente com câncer, Darcy protagoniza mais um memorável episódio, ilustrativo da conhecida personalidade insurgente do pensador. Em determinado dia, internado no hospital, Darcy enganou os médicos, fugiu e se refugiou em seu sítio em Maricá, no Rio de Janeiro. No caminho, parou duas vezes para tomar caldo de cana e comer pastel. O objetivo final dessa sua última fuga era completar a sua obra de teoria do Brasil, O Povo Brasileiro, publicado em 1995, dois anos antes de sua morte.[3]

Neste livro, que se dedica a analisar e identificar o sentido na formação do Brasil, é uma obra apaixonada. Em inúmeros momentos Darcy expõe uma visão otimista do futuro nacional, identificando a resiliência de um povo sofrido e conduzido pelo que chamava de “elite enferma de desigualdade”,[4] subserviente a um capital internacional que converte a empresa Brasil em um moinho de moer gente e lhe impede de se realizar. Mas conclui, sempre, pela prevalência das virtudes que compõe o país e o tornam um fenômeno social único e potente, e aposta em um futuro no qual serão superados os retrocessos e impedimentos impostos pela desigualdade, ao ponto de projetar a utopia de uma “Nova Roma”:

“Somos povos novos ainda na luta para nos fazermos a nós mesmos, como um gênero humano novo que nunca existiu antes. Tarefa muito mais difícil e penosa, mas também muito mais bela e desafiante.

Na verdade das coisas, o que somos é a nova Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil é já a maior das nações neolatinas, pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua criatividade artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso autossustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais bela e luminosa província da Terra.”[5]

  1. Um legado de lutas

O momento é oportuno para lembrar de Darcy Ribeiro por sua inabalável vontade de construir um país democrático. Vontade que nem um golpe militar, sucessivos exílios, dois cânceres e uma contínua labuta alcançando em igual monta derrotas e vitórias políticas, foram capazes de abalar. Após um período de grandes retrocessos democráticos, no encerramento do primeiro ano de um governo que se propôs a reconstruir uma base republicana harmônica, o horizonte apresenta contornos difusos e a incerteza com relação ao apaziguamento das ameaças ao Estado Democrático de Direito não devem esvaziar a vontade de lutar. Ao fim e a cabo, o maior legado que existe é a certeza de ter combatido o bom combate. E vivido, humanamente, o melhor possível, em todas as peles que possuímos:

“Estas são as peles que tenho para exibir. Em todas e em cada uma delas, me exerci sempre igual a mim, mas também variando sempre. Se tivesse ficado em uma só, teria feito, talvez, uma vida de mérito. Exercendo tantos papéis – antropólogo, educador, político, romancista – me dispersei demais, perdendo consistência biográfica. Mas não me arrependo, se me fosse dado viver outra vida, eu faria o mesmo. Afinal, não vivemos só para servir. Vivemos também e principalmente é para nos exercermos como humana gente, curtindo a vida, tirando dela o gozo que nos pode dar. Apesar de todos os amargores, gosto muito de ter vivido a vida que vivi e guardo no fundo do peito a esperança de que meus fazimentos maiores não estejam no passado, mas no futuro. Serão aqueles que ainda hei de fazer.” [6]

Referências

BOTELHO, André; SCHWARZ, Lilia Moritz (Orgs.) Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

JOSÉ, Emiliano. Waldir Pires: biografia – volume 1. São Paulo: Versal, 2018

PERICÁS, Luiz Bernardo; SECCO, Lincoln Ferreira (Orgs.). Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados. São Paulo: Boitempo, 2014.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Global, 2022.

___________. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.

Notas de Rodapé

[1] JOSÉ, Emiliano. Waldir Pires: biografia – volume 1. São Paulo: Versal, 2018, p. 13-22.

[2] RIBEIRO, Darcy. O Brasil como problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 308.

[3] RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Global, 2022, p. v.

[4] Ibid., p. 163.

[5] Ibid., p. 332.

[6] RIEIRO, 1995, p. 311.

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