Resgatando o direito ao futuro 

Um chamado para o que está por vir

Há poucos dias o Brasil descobriu que uma de suas capitais, Maceió, estaria na iminência de afundar. Para a maioria da população, esta informação surge como algo que ocorre “do dia para a noite”, assim como foram diversas outras catástrofes ambientais da história recente do país. Foi assim com os casos de Mariana e Brumadinho[1], com o rompimento das barragens da Vale, e é agora, novamente, com o desastre em Maceió, desta vez com a extração irresponsável de sal-gema pela Braskem[2].

Em geral, as grandes empresas costumam conhecer muito bem os riscos envolvidos na atividade que desempenham, e não apenas em um sentido abstrato. Assim como fora comprovado que a Vale sabia dos riscos do rompimento das barragens[3], a Braskem tem conhecimento da possibilidade do colapso desde os anos 70, quando o regime militar exerceu o papel de perseguir a imprensa e a militância que tentasse levar ao público esta informação[4]. A ditadura considerava que estas críticas significavam “uma ameaça contra a atividade industrial do país”[5].

Grandes empresas, pequenas responsabilidades. Este parece ser o slogan mais adequado para definir a farra das elites empresariais no Brasil. Enquanto ano após ano continuam a produzir os mais variados desastres ambientais por pura negligência e ganância[6], a sua responsabilização consiste apenas em multas e indenizações aos afetados pelas tragédias, que por vezes perdem tudo que tinham, desde suas moradias até seus entes queridos. Se de um lado a conta humana destes casos é altíssima, a conta monetária para os poderosos é de um mero risco financeiro previamente calculado.  Ao colocar na balança o valor das multas e indenizações, o saldo ainda sai positivo. Desnecessário dizer que sua balança reconhece cifras, mas não vidas.

Não há nada novo nos casos recentes de Maceió, Mariana, Brumadinho, ou qualquer outro que pudéssemos recordar. O incômodo maior surge em constatar, que a cada episódio dessa natureza, a indignação social parecer ser cada vez menor. A mobilização popular, seja nas ruas ou nas redes, tem sido cada vez menos capaz de combater e contestar este tipo de injustiça, que extrapola o campo do ambiental, sendo uma questão essencialmente social e econômica. Mas o que explica este esmorecimento do indignar-se que nossa geração vem experimentando?

A tônica de nosso tempo é, certamente, a do desencantamento. Os anos de neoliberalismo criaram uma geração resignada, cada vez menos esperançosa em relação ao futuro. A iminente catástrofe ambiental generalizada, causada pela exploração inescrupulosa de recursos naturais pelas megacorporações a nível global, é apenas um dos diversos becos sem saída que o neoliberalismo foi capaz de produzir. O mundo do trabalho vem passando por uma massiva precarização e informalização; fomos ainda obrigados a ver a tecnologia, que vinha supostamente para facilitar nossas vidas, nos colocar no olho da rua ou reduzir agressivamente os salários dos que ainda resistem no mercado de trabalho formal. O capital vem se apropriando de uma fatia maior do bolo a cada dia que passa, e esse já parece ser para nós o curso natural da história. Assim, o fundamento da inércia das massas reside justamente em um longo ciclo de frustrações que o capitalismo tardio impôs à esta geração, que passou a ser incapaz de vislumbrar a simples possibilidade de um futuro.

Cabe aqui a assustadora revelação de que temos retornado cada vez mais à tese do “fim da história”, de Francis Fukuyama[7]. Com a queda do muro de Berlim, Fukuyama alavancou o capitalismo ao posto de sistema econômico vencedor, decretando a morte de todas as alternativas que ousaram lhe contestar, em especial, as experiências socialistas ao redor do globo – com a queda do muro simbolizando a derrocada final do Socialismo Real da URSS. Para o autor, o colapso soviético seria a prova final de que o capitalismo é de fato o único sistema econômico que, apesar de suas evidentes “imperfeições”, é capaz de manter uma mínima “ordem social”. Não sendo de fato aquilo que desejamos, mas superior às alternativas que já foram tentadas.

Mark Fisher desenvolveu o conceito de Realismo Capitalista[8] exatamente nesse sentido, descrevendo como o sujeito neoliberal está cooptado por este realismo fatalista, incapaz visualizar o rompimento com a lógica da exploração capitalista como um horizonte possível. Por óbvio, o fundamento desta subjetividade está na própria condição do presente, de um mundo em frangalhos, com oportunidades escassas e no aguardo do colapso ambiental.

Esta é a verdadeira tragédia desta geração, quanto mais ameaçada passa a ser nossa existência, caímos cada vez em um estado mais profundo de apatia. De fato, internalizamos o slogan thatcheriano “there is no alternative”. Aceitamos o destino que o capital, em sua ânsia inesgotável por acumular, traçou para nós. A mentalidade comum agora é a de “fazer o meu, pois as cartas já estão dadas e não posso mudar o mundo sozinho”. Ou ainda, aos que veem no fim dos tempos um copo meio cheio, “se o mundo está acabando, vamos viver tudo que há para viver!” Uma espécie de neo carpe diem pré-apocalíptico? Talvez. Mas o fato é que se no passado a injustiça nos levava para as ruas, hoje até um pequeno embate com o tio fascista no jantar de família é um desgaste desnecessário e inútil. Para que se indispor por uma luta perdida, certo?

Ao refletir sobre a angústia de nossos tempos, algo me remeteu à esta célebre passagem de Lenin: “É preciso sonhar, mas com a condição de crer em nosso sonho, de observar com atenção a vida real, de confrontar a observação com nosso sonho, de realizar escrupulosamente nossas fantasias. Sonhos, acredite neles.” O neoliberalismo tem nos privado do direito de sonhar, tem retirado materialmente as condições para crer em nosso futuro. 

Portanto, nosso próximo passo em direção à liberdade tem de ser o de resgatar o direito ao futuro. Um futuro de um mundo habitável, de novas oportunidades, um mundo radicalmente democrático, e de igualdade entre os diferentes. Proponho, para encarar de frente nossa paralisia será necessária, em meio ao caos de nosso tempo, uma nova filosofia da esperança. Uma filosofia voltada para a ação. É essencial que sejamos capazes de, novamente, acreditar em um novo mundo. Em tempos desesperados, a esperança pode ser o combustível da transformação social.

Em um primeiro ato, por decreto, devemos quebrar as correntes da desilusão, renunciando integralmente à ideia de que o futuro pereceu. Assim, podemos passar a encará-lo como uma instituição do possível, ou seja, como algo que ainda pode vir a ser

Neste 31 de dezembro, busquem suas empoeiradas roupas vermelhas no canto do armário, vistam-nas, e quando o relógio bater meia-noite, olhem no fundo dos olhos daqueles que amam, e como há muito tempo não o fazem, se permitam, mais uma vez, sonhar.

Feliz ano novo, camaradas. Vejo vocês no futuro.

Notas de rodapé

[1] PROFISSÃO REPÓRTER VOLTA A FALAR SOBRE DESASTRES DE MARIANA E BRUMADINHO (MG); RELEMBRE EDIÇÕES ANTERIORES | PROFISSÃO REPÓRTER | G1. [S. l.], [s. d.]. Disponível em: https://g1.globo.com/profissao-reporter/noticia/2023/05/30/profissao-reporter-volta-a-falar-sobre-desastres-de-mariana-e-brumadinho-mg-relembre-edicoes-anteriores.ghtml. Acesso em: 26 dez. 2023.

[2] DESASTRE EM MACEIÓ: ENTENDA O QUE PROVOCOU O ROMPIMENTO DE MINA DE SAL-GEMA DA BRASKEM. [S. l.], [s. d.]. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/12/11/desastre-em-maceio-entenda-o-que-provocou-o-rompimento-de-mina-de-sal-gema-da-braskem.ghtml. Acesso em: 26 dez. 2023.

[3] DOCUMENTOS INDICAM QUE VALE SABIA DAS CHANCES DE ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE BRUMADINHO DESDE 2017 | MINAS GERAIS | G1. [S. l.], [s. d.]. Disponível em: https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/noticia/2019/02/12/documentos-indicam-que-vale-sabia-das-chances-de-rompimento-da-barragem-da-brumadinho-desde-2017.ghtml. Acesso em: 26 dez. 2023.

[4] MOTORYN, Paulo. Braskem: Ditadura já sabia dos riscos e espionou críticos. In: INTERCEPT BRASIL. 6 dez. 2023. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2023/12/06/braskem-ditadura-ja-sabia-dos-riscos-mas-espionou-criticos-e-imprensa-contrarios-a-exploracao-em-maceio/. Acesso em: 26 dez. 2023.

[5] Ibid.

[6] Se faz tal assertiva tendo em vista que, mesmo sabendo dos riscos de rompimento, como se apontou acima, a empresa optou por não realizar os ajustes necessários para solucionar os problemas.

[7] FUKUYAMA, Francis. The end of history and the last man. New York: Macmillan, 1992.

[8] FISHER, Mark. Realismo capitalista: é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo? São Paulo: Autonomia Literária, 2020.

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