"Apenas" uma maranhense? Longe disso, Firmina. Você foi gigante!

A FLIP, Festa Internacional Literária de Paraty, acontece anualmente, desde 2003. Todo ano, a curadoria seleciona um autor ou autora para render-lhe homenagens. Até então, dos dezoito homenageados, apenas quatro eram mulheres[1] e, destas, nenhuma negra. Finalmente, a edição deste ano homenageará uma escritora negra: Maria Firmina dos Reis.

Até pouquíssimo tempo atrás, não se ouvia falar de Maria Firmina dos Reis. No colégio, nas minhas aulas de literatura, ao estudar os considerados clássicos, seu nome foi sequer citado. Na verdade, se pararmos para refletir, percebemos que feitos de diversas mulheres foram simplesmente apagados da História do Brasil e que, pouco a pouco, graças ao trabalho de pesquisadores e pesquisadoras, vamos conhecendo a trajetória e a importância de mulheres para a construção do nosso país.

Em setembro de 2022 temos o bicentenário da Independência[2]. É também o ano em que temos o centenário da Semana de Arte Moderna e o centenário de falecimento de Lima Barreto. E as datas históricas não param por aí: celebramos os 200 anos do nascimento de Maria Firmina dos Reis.

Quem foi Maria Firmina dos Reis?

Mulher, negra, maranhense… Firmina vem ao mundo em um país ainda escravocrata, com alta taxa de analfabetismo. No entanto, em 1830, ainda criança, tem o primeiro contato com as letras, ao se mudar para a casa de uma tia em São José de Guimarães. O gosto pelo estudo e pela leitura só afloraram e, em 1847, tornou-se professora concursada e ensinou durante a vida[3]. Inclusive, pouco antes de se aposentar, consciente que era sobre a importância da educação, fundou em 1880 uma escola gratuita, para meninos e meninas[4].

Firmina era abolicionista e através de sua escrita denunciou os horrores da escravidão. Em 1859, no mesmo ano em que outro importante abolicionista, Luis Gama, publica “Primeiras Trovas Burlescas de Getulino”, Firmina publica “Úrsula”, considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro.

O primeiro romance abolicionista brasileiro

Na primeira edição do romance, a autora assina apenas “uma maranhense”. Já em seu prólogo, ela nos traz uma possível justificativa: “Sei que pouco vale esse romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem trato e a conversação dos homens ilustrados”. As questões raciais e de gênero eram – e, infelizmente, ainda são – fatores que levavam à publicação, divulgação e aclamação de uma obra[5].

Ainda que pensasse, de acordo com o prólogo, que a obra passaria indiferente para alguns e seria motivo de risos para outros, Firmina decide publicá-la. Ousou colocar no mundo uma obra abolicionista, em pleno Brasil oitocentista e ainda escrita por uma mulher negra.

“Ah, mas se trata de mais um romance, mais um triângulo amoroso com a mocinha, o vilão e o mocinho”. Engana-se quem assim pensa: trata-se de uma obra que, pela primeira vez, traz personagens escravizados que tem voz e ainda relata, através da personagem mãe Susana, as dores de quem foi arrancada de seu país e trazida à força para o Brasil, em um tumbeiro[6]:

Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura, até que abordamos às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé, e, para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa: davam-nos a água imunda, podre e dada com mesquinhez, a comida má e ainda mais porca; vimos morrer ao nosso lado muitos companheiros à falta de ar, de alimento e de água. É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim, e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos! Muitos não deixavam chegar esse último extremo — davam-se à morte.

Firmina, além de descrever com riqueza de detalhes o horror de um navio negreiro, nos traz o sentimento do banzo[7] vivido por Susana, mulher negra, escravizada. Consciente de que teve a liberdade arrancada, a personagem ainda trava um forte diálogo com Túlio, que pensa que, por ter “ganhado” a liberdade de presente do seu “bom senhor”, lhe deve tudo. A autora reflete sobre o que é realmente ser livre e sobre o fato de que não se pode ser iludido: aquele que lhe concedeu a liberdade foi justamente quem a tomou anos antes.

Liberdade, liberdade!

“Úrsula” não é a única obra de Firmina, que, ao longo de meio século escreveu e publicou seus contos e crônicas em jornais maranhenses. Merece destaque o conto “A escrava”, nos traz a história de uma mulher da alta classe, que de formativa participa do movimento abolicionista[8] e também o Hino aos escravos, de 1888:

Salve Pátria do Progresso! Salve! Salve Deus a Igualdade! Salve! Salve o Sol que raiou hoje, Difundindo a Liberdade! Quebrou-se enfim a cadeia Da nefanda Escravidão! Aqueles que antes oprimias, Hoje terás como irmão!

Serendipidade

Por onde se escondia a obra desta grande escritora?

Apesar da vasta produção literária, muitos de seus arquivos foram perdidos, quando a escritora, aos 95 anos de idade, faleceu, com problemas de visão e sem recursos financeiros.

Ana Maria Gonçalves, logo no início de sua grandiosa obra “Um defeito de cor”, fala em serendipidade[9]. E foi justamente a tal da serendipidade que fez com que o bibliógrafo e pesquisador Horácio de Almeida encontrasse “Úrsula”, em 1962, ou seja, decorridos mais de um século de sua publicação. Ainda assim, muito tempo levou para o redescobrimento da preciosidade que é a obra de Firmina. Atualmente, suas obras já fazem parte da lista de leituras obrigatórias para os vestibulares[10]. 

Recentemente, em 2017, no centenário de morte da escritora, a Lei Estadual 10.763 instituiu o dia 11 de março – dia em que nasceu Firmina – como o Dia da Mulher Maranhense.

Firmina, que com sua obra “Úrsula” denunciou o sistema escravista e humanizou os escravizados e escravizadas, dando-lhes voz e sentimentos através de suas personagens, vem finalmente sendo reconhecida pela população.

“Apenas” uma maranhense? Longe disso, Firmina. Você foi gigante!

Notas de rodapé

[1] As homenageadas foram: Clarice Lispector (2005), Ana Cristina Cesar (2016), Hilda Hilst (2018) e Elizabeth Bishop (2020).

[2] É preciso tecer críticas à Independência. Diversas questões foram omitidas ao longo das décadas, focando apenas na imagem – que pouco guarda relação com a realidade – que nós temos do Grito do Ipiranga, a partir do quadro de Pedro Américo. O Museu de Arte do Rio está com a exposição que revisita a Independência a partir de revoltas. Diversas obras literárias nos trazem críticas a esta imagem que nos é vendida desde os tempos de colégio. Para além disso, quem eram os cidadãos no Brasil oitocentista patriarcal e escravocrata? Fica aqui mais uma reflexão.

[3] No dia em que tomou posse, se recusou a ser levada em um palanquim sobre o ombro de um escravizado: “negro não é animal para se andar montado nele”, disse.

[4] DUARTE, Constancia Lima et al (org.). Maria Firmina dos Reis – faces de uma precursora. Rio de Janeiro: Malê. 2018. p. 18.

[5] Faça um exercício: vá até a estante de livros de sua casa e conte quantos livros você já leu que foram escritos por pessoas negras. Conte também quantos livros foram escritos por mulheres e quantos livros foram escritos por pessoas LGBTQIA+. Ainda temos, infelizmente, destaque para literatura produzida por homens cis héteros.

[6] DOS REIS, Maria Firmina. Úrsula. 1 ed. São Paulo: Litterae, 2021. p. 96.

[7] Banzo é uma tristeza, uma depressão que acometia africanos e africanas que foram arrancados de sua terra e escravizados e que por vezes os levava à morte. Saiba mais em https://revistapesquisa.fapesp.br/a-saudade-que-mata/#:~:text=Essa%20tristeza%2C%20batizada%20de%20banzo,levava%20os%20negros%20%C3%A0%20morte. Acesso em 20 set. 2022.

[8] Publicado 3 anos após a abolição da escravidão no Ceará, em um momento em que o sistema escravista dava seus últimos respiros, o conto teve uma grande repercussão e foi publicado na Revista Maranhense.

[9] GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. 8 ed. Rio de Janeiro: Record, 2012. p. 09.

[10] https://osalto.com.br/vestibular-uema-2022-analises-literarias-das-obras/. Acesso em 21 set. 2022.

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