A outra história da indústria cinematográfica de Hollywood

Definir marcos inaugurais é procedimento que, em história, sempre entusiasmou os espíritos e engendrou acirradas polêmicas. Apesar disso, naquilo que concerne ao cinema, o recurso a uma mescla de obras de referência já nos permitiria concluir que a data de nascimento da sétima arte está amplamente consolidada, livre de querelas ou reviravoltas substanciais que pudessem suscitar eventuais alterações.

Consta nas certidões oficiais que o cinema foi dado à luz em Paris, aos 22 de março de 1895. Tratou-se de evento singelo, desprovido da suntuosidade com que se deveria celebrar o nascimento de uma nova arte, mas que, não obstante, tomaria proporções descomunais, cujos efeitos, ainda hoje, se fazem sentir.

Diante dos membros da Sociedade para o Desenvolvimento da Indústria Nacional (1801-), os irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948) exibiram A Saída das Fábricas Lumière em Lyon[1], um rápido e silencioso prenúncio do século que se avizinhava, com o qual gravaram seus nomes definitivamente nos anais da história. Os espectadores eram o público ideal, dado que o cinema é, antes de mais nada, fruto direto do desenvolvimento das forças produtivas, da indústria e da técnica, e logrou satisfazer uma das mais remotas aspirações humanas: reproduzir o movimento pela imagem[2].

Especula-se que tal ambição coincida com duas tendências multimilenares. De um lado, as pinturas rudimentares, encontradas em sítios arqueológicos, dão mostra de que, mesmo antes do Paleolítico, já se verifica não apenas a pretensão de reproduzir aquilo que se vê, como também de exprimir seu movimento a partir de quadros sequenciais. De outro lado, a projeção de sombras em tela, apesar de ter caído em desuso, foi uma arte das mais populares, razão pela qual reverberou na mais sublime das alegorias filosóficas, impressa nas páginas imortais da República de Platão (429?-347 a.C.).

Ocorre que, se, em pintura, o movimento é inevitavelmente dependente da imaginação do observador, no teatro das sombras ocorre justamente o oposto: as silhuetas conquistam o movimento, mas não passam de silhuetas, formas carentes de conteúdo, porquanto desprovidas de fisionomia[3]. Com a invenção do cinematógrafo, a técnica[4] oferecia uma resposta concreta às duas tendências complementares: recriava a vida, vencia a imobilidade e preenchia a escuridão.

Animados pelo sucesso do empreendimento, os irmãos Lumière não tardaram a providenciar a primeira mostra pública de cinema, onde, a partir de 28 de dezembro de 1895, os pagantes puderam assistir, por diversas sessões diárias, a uma série de “documentários” ou “atualidades”.

Do outro lado do oceano, nos Estados Unidos, tão imediatamente quanto em 1903, Edwin S. Porter (1870-1941) estrearia com seu O Grande Roubo do Trem[5], curta-metragem que introduziu o gênero Western, firmando a relação entre o cinema e as representações criminais. Analisando-o, conclui-se que o enfoque era a mecânica do delito, seu aspecto procedimental, motivo pelo qual é muito mais criminalístico do que propriamente criminológico. Mas o que verdadeiramente interessa é a cena final, emblemática do momento histórico: operando uma “quebra na quarta parede”, o vilão, um assaltante, aparece novamente, mirando o público, contra o qual começa a descarregar as balas de seu revólver. Por incrível que possa parecer aos espectadores do século XXI, os testemunhos de época garantem que um número significativo de pessoas se abaixava por detrás das poltronas, com medo de ser alvejado pelos tiros.

Justus D. Barnes (1862-1946), clicado na cena antológica

Pode-se imaginar a reação dos cineastas e dos atores em face da resposta do público: sem dúvida, muitos caíram na gargalhada, mas alguns poucos, mais inteligentes e visionários, devem ter experienciado uma ocasião reveladora, captando o poder que a imagem em movimento é capaz de exercer sobre o público. Bem pensados e executados, filmes deflagram um turbilhão de sentimentos: alegria e tristeza, empatia e indiferença, afeição e ódio, esperança e medo… De uma maneira ou de outra, o movimento da imagem nos comove a todos.

E ninguém melhor que Nicole Rafter (1939-2016) percebeu as implicações criminológicas do fenômeno cinematográfico[6]. Afinal, é bem possível que os primeiros contatos que tivemos com a questão criminal tenham se dado em uma sala de cinema ou de estar, pela telona ou pela telinha. É por isso que os criminólogos devem estar atentos às produções cinematográficas, especialmente aos blockbusters hollywoodianos, cuja hegemonia cultural é sem paralelo.

A crítica, todavia, não se deve resumir ao produto final, aos filmes que são produzidos pelos grandes estúdios. Desde um ponto de vista metódico, a indústria cinematográfica é parte integrante de um sistema cultural, e há que investigar as suas relações de interação e mediação com os outros sistemas que compõem a vida social. Do contrário, o cinema se restringiria a uma gigantesca coleção de mercadorias…

Nesse sentido, examinemos, sucintamente, duas determinações fundamentais para os que têm interesse na indústria cinematográfica e, em particular, naquilo que Hollywood exporta para os quatro cantos do mundo.

Em primeiro lugar, se é certo que o cinema evoluiu esteticamente no curso das décadas, também é verdade que as preocupações dessa natureza sempre estiveram subjugadas por finalidades essencialmente mercadológicas: comunicação e entretenimento. Decerto a indústria compreendeu, desde o princípio, as potencialidades da ferramenta que tinha em mãos, e não foi necessário esperar por um Joseph Goebbels (1897-1945) e seus cineastas de estimação para que o cinema florescesse como instrumento de propaganda.

Na “terra da liberdade e da oportunidade”, que haveria de se afirmar como a maior das “democracias ocidentais”, Hollywood passaria a servir de metonímia para o cinema estadunidense. Para reagirmos à esparrela politiqueira, basta indicar O Nascimento de uma Nação (1915), dirigido por D. W. Griffith (1875-1948), o primeiro a filmar naquelas paragens. Trata-se de caso exemplar, em que o aprimoramento da técnica era empregado para fomentar uma ideologia das mais asquerosas. E deu certo: foi o primeiro filme exibido na Casa Branca, tornou-se o favorito do então presidente Woodrow Wilson (1856-1924) e, abraçando uma narrativa que estigmatizava brutalmente os negros, representados como seres intrinsecamente inferiores e propensos ao crime, foi uma das principais forças motrizes para o ressurgimento da Ku Klux Klan[7] (KKK).

Cartaz de "O Nascimento de uma Nação" (1915), onde se lê: "o filme supremo de todos os tempos".

Em segundo lugar, naquilo que respeita aos pressupostos tecnológicos que ensejaram a nascença mesma do cinema, é óbvio que tamanha inventividade não poderia se manter adstrita ao trinômio arte-entretenimento-propaganda. Tanto isso é verdade que, ainda em 1914, o cinematógrafo passou a ser utilizado como instrumento de guerra[8]:

Desenvolvendo dessa forma as premissas de uma verdadeira logística da percepção militar, em que o aprovisionamento de imagens se tornará equivalente ao aprovisionamento de munições, a guerra de 1914 inaugurará um novo ‘sistema de armas’, formado pela combinação de um veículo de combate e de uma câmera, sistematização do clássico ‘veículo travelling’, que desembocará, após a Segunda Guerra Mundial, no esboço de uma estratégia da visão global, graças aos satélites-espiões, aos aviões por controle remoto e aos mísseis-vídeo, mas sobretudo graças ao surgimento de um último tipo de quartel-general, de uma autoridade central da guerra eletrônica, capaz de garantir em ‘tempo real’ a gestão das imagens e das informações de um conflito alçado ao nível planetário, como o tal posto de comando C3i – Controle, Comando, Comunicação, Inteligência – de que dispõem agora todas as grandes potências.

Complementando as linhas elucidativas de Paul Virilio (1932-2018), recorde-se que as próprias produções cinematográficas podem e frequentemente são utilizadas para ampliar a máquina de guerra. Por esse ângulo, um exemplo dos mais enfáticos é Top Gun (1986).

Decorridos dez anos desde o fim da guerra contra o Vietnã, a Marinha estadunidense ainda enfrentava uma séria crise de recrutamento. Sua estratégia para responder a esse estado de coisas foi das mais engenhosas: prestaram suporte ao projeto de Tony Scott (1944-2012), cedendo porta-aviões e pilotos profissionais para as filmagens. Em troca, o diretor deveria circunscrever as cenas de conflito aos domínios aéreos, transmitindo a ideia de que os mares estavam livres de combate. À saída das salas de cinema, os espectadores da maior bilheteria de 1986 encontravam estandes de recrutamento naval e, empolgados que estavam com o que haviam assistido, juntavam-se à Marinha[9].

Aliás, entre o fim da guerra e o lançamento de Top Gun, a Marinha estava tão desesperada para recuperar a antiga popularidade, que chegou a emprestar um navio destroyer para que o Village People (1977-), símbolo da cultura gay da época, filmasse o videoclipe de In the Navy[10]!

Dos fatos acima narrados, extrai-se bons argumentos contra a visão descomedidamente apologética da técnica, mas isso não nos deveria conduzir à posição de antagonismo vulgar e irrestrito, que demoniza a tecnologia, à moda de um ludismo retardatário. É recomendável uma atitude temperada, em que as relações entre ciência e técnica sejam mediadas por compromissos éticos, regidos pelo mais acentuado humanismo.

Afinal, a tecnologia pode servir ao entretenimento vazio e belicista de um Michael Bay (1965-), mas também à crítica sofisticada e impenitente de um Costa-Gravas (1933-); pode amoldar-se ao projeto delirante de armar a população civil, mas também pode amparar a pesquisa, a produção e a distribuição de vacinas para bilhões de pessoas; pode propagandear o ódio ou estimular a solidariedade; pode instrumentalizar a ordem do capital ou aparelhar uma crítica radical. Em suma: pode segregar ou congregar.

Notas de Rodapé

[1] As três versões do curta-metragem estão disponíveis: https://youtu.be/J1EdyZtkGXo

[2] ROSENFELD, Anatol. Cinema: arte & indústria. 1ª. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 52.

[3] Ibid., p. 54.

[4] Técnica esta que, diga-se de passagem, tem respeitáveis antecedentes históricos: desde a câmera escura de Baptista della Porta (1540-1615), passando pela “lanterna mágica”, talvez de Christiaan Huygens (1629-1695), e pela lanterna de projeção, de Thomas Walgensten (1627-1681), avançando pelo “fantascópio” de Étienne-Gaspard Robert (1763-1837), até que se chegasse aos “cronofotógrafos” e “quinetógrafos” de Étienne-Jules Marey (1830-1904) e Thomas Edison (1847-1931). Neste ponto, o belo ensaio de Rosenfeld incorre em alguns erros e imprecisões, os quais procurei reparar.

[5] A versão completa (e posteriormente musicada) se encontra disponível: https://youtu.be/cT6Pz9t89Lk

[6] Cf.: RAFTER, Nicole. Shots in the mirror: crime films and society. Oxford: Oxford University Press, 2006; RAFTER, Nicole; BROWN, Michelle. Criminology goes to the movies: crime theory and popular culture. New York: New York University Press, 2011.

[7] Sobre isso, aos que ainda não o assistiram, recomendo enfaticamente o documentário A 13ª Emenda (Ava DuVernay, 2016).

[8] VIRILIO, Paul. Cinema e guerra: logística da percepção. Trad.: Paulo Roberto Pires. São Paulo: Boitempo, 2005, pp. 15-16.

[9] Para esta e muitas outras histórias, confiram o instigante trabalho: VALANTIN, Jean-Michel. Hollywood, the Pentagon and Washington: the movies and National Security from World War II to the present day. Anthem Press, 2005, p. 7.

[10] In: https://youtu.be/xYE7gb51Xxk

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