Como os pressupostos ontológicos podem afetar a criminologia?

Fala-se muito da importância que os pressupostos desempenham na definição dos rumos de uma pesquisa e na consequente elaboração teórica. O postulado é universalmente admitido, mas merece algum detalhamento, uma vez que há diversos tipos de pressupostos: lógicos, morais, ontológicos, epistemológicos, metodológicos etc.

De posse da bibliografia criminológica mais avançada, surge uma incômoda desconfiança: talvez os pressupostos ontológicos ainda figurem como uma espécie de “patinho feio” filosófico, cruelmente preterido em favor do “cisne encantador” epistemológico. Pobre animalzinho: tão predileto e, não obstante, tão maltratado.

No mundo acadêmico ideal, os pesquisadores declarariam seus pressupostos ontológicos com a máxima clareza, discutindo possíveis rivalidades teóricas, apontando implicações teóricas plausíveis e defendendo, abertamente, suas posições intelectuais. Contudo, a realidade nua e crua é implacável: a maioria dos criminólogos tem apenas uma vaga ideia do debate global.

Isto posto, as linhas que seguem versam sobre quatro pressupostos ontológicos. Bem poderiam ser cinco, seis ou, quem sabe, até sete. Mas fiquemos apenas com os quatro selecionados, justamente por serem nucleares para uma crítica criminológica digna de menção.

Sistemismo

De um ponto de vista ontológico, o sistemismo corresponde à afirmação de que tudo aquilo que existe ou é um sistema, ou é parte integrante de um sistema. À moda do que ocorre com os pressupostos, há diversos tipos de sistema, a saber[1]: os naturais (e.g., moléculas e organismos), os sociais (e.g., escolas ou prisões), os técnicos (e.g., máquinas), os conceituais (e.g., teorias, codificações e taxonomias) e os semióticos (e.g., linguagem).

No que tange aos sistemas concretos, recomenda-se que a análise verifique sua composição (as partes que o integram), seu entorno e sua estrutura (conjunto de mediações entre as partes componentes). Disso se conclui que não há estruturas em si mesmas, já que estruturas não são outra coisa senão a propriedade de um sistema[2].

Entre os concorrentes mais legítimos do sistemismo, sobressaem o individualismo (ou atomismo) e o holismo (ou estruturalismo). Legítimos, porém infecundos: enquanto o individualismo peca por reduzir o todo ao somatório de suas partes componentes, o holismo invariavelmente cai em uma contradição lógica, ao assumir que o todo precede as partes que o compõem[3].

Veja-se que ambos os pressupostos encontram eco nas duas principais tendências metodológicas da criminologia tradicional: a etiologia individual e a etiologia socioambiental. Para além da conhecida discussão sobre a ausência de uma ontologia do crime e de uma essência criminosa, ambas as tendências são inescapavelmente reducionistas: a primeira, por resumir as causas do delito a atributos genéticos; a segunda, por repetir o velho enunciado de que “o ser é produto do meio”, negando o princípio da individualidade.

Materialismo

Todo objeto é ou material ou conceitual, e não ambos ao mesmo tempo[4]. Todos os seres existentes são materiais e estão agrupados em muitos níveis organizacionais (físico, químico, biológico, social etc.). Sendo assim, o materialismo mais consequente com o sistemismo é dinâmico e emergentista[5].

É dinâmico, pois tudo aquilo que existe no mundo real é mutável. É emergentista, pois, da interação entre as partes componentes de um sistema, emergem propriedades que são peculiares[6]. Da interação entre duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio (H2O), surgem propriedades como a fluidez, a capacidade de evaporar e congelar, propriedades essas que nem são redutíveis às partes componentes, nem ao todo. Algo similar se verifica em crianças, quando estão próximas a 1 ano de idade e principiam a falar. Diante desses exemplos (e de tantos outros) como aderir a qualquer uma das duas ontologias concorrentes?

Todos os sistemas concretos, porquanto compostos de entes materiais, estão em permanente mudança e estão sujeitos à emergência de determinadas propriedades, que virão a compor sua estrutura. Famílias não são meros agregados de pessoas unidas por certos laços: da interação contínua entre seus membros, emerge uma série de propriedades – intimidade, confiança, cooperação, solidariedade, amor etc.

A título de reflexão, indaga-se: quais seriam as propriedades emergentes do sistema penal?

Realismo

Rememoremos o famoso “teorema” de Thomas: “Se os homens definem situações como reais, elas são reais em suas consequências”. Na verdade, o que se tem é um postulado, que foi amplamente divulgado pelos teóricos do etiquetamento, alcançando o status de leitmotiv.

De fato, os indivíduos reagem ao modo pelo qual percebem os fatos, pois as ações sociais implicam processos mentais: as pessoas atuam baseando-se em informações, crenças e interesses. Eis a razão pela qual a certeza, longe de ser uma categoria epistemológica, é, antes, uma categoria psicológica: pode-se estar convicto dos maiores absurdos e descrente de verdades já mais que consolidadas pelo conhecimento científico.

Para um realista, o mundo exterior existe independentemente do sujeito cognoscente, e pode ser conhecido – coisa que, em nenhum momento, se confunde com a alegação (desonesta) de que os cientistas pretendem alcançar um conhecimento total e infalível. Todo conhecimento é necessariamente incompleto e falível.

Nesse sentido, os fatos sociais são objetivos, ainda que possam ser percebidos de modos distintos por indivíduos diferentes. O que se tem, portanto, é a afirmação do construtivismo psicológico, e não de um construtivismo ontológico. Percepções são relativas e construídas, mas não a realidade em si.

Cientificismo

Em nossos manuais de criminologia, especialmente aqueles identificados com uma postura crítica em face das criminologias rotineiras, é comum encontrarmos o adjetivo “cientificista” como um rótulo pejorativo empregado para caracterizar posições tidas por conservadoras.

Trata-se de uma imprecisão terminológica. No mais das vezes, o que os estimados autores querem dizer é outra coisa, mas metem os pés pelas mãos, e, ainda que inintencionalmente, acabam por difamar a ciência. Ainda que possamos admitir a existência de múltiplas formas de conhecimento, é evidente que a ciência é a melhor maneira de conhecer a realidade – e esse é o significado real de “cientificismo”. Por que é a melhor? Por pelo menos três razões: é a única que fomenta o debate franco e aberto, a contínua revisão e o ceticismo metódico. Nenhuma outra forma de conhecimento que se queira defender satisfaz essas três condições. Se é assim, os anticientificistas estão a um palmo (ou menos) do obscurantismo…

Notas de rodapé

[1] Cf.: BUNGE, Mario. La relación entre la sociología y la filosofía. Madrid: EDAF, 2000.

[2] Abordo a questão no meu “Consciência negra e racismo estrutural”. In: https://www.introcrim.com.br/consciencia-negra-e-racismo-estrutural/

[3] Ibid., p. 29.

[4] Por paradoxal que possa parecer, a matéria é conceitual, e não material, uma vez que compõe o conjunto de todos os entes materiais. Cf.: BUNGE, Mario. Caçando a realidade: a luta pelo realismo. São Paulo: Perspectiva, 2010.

[5] BUNGE, Mario. Dicionário de filosofia. Trad.: Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2012.

[6] Idem.

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