O apagamento de Sepé Tiajaru como reflexo dos perigos da história única.

Percebo um movimento que toma cada vez mais força, no sentido de refletirmos sobre a História do Brasil e dos fatos que a compõem. Ainda na escola, por exemplo, eu – e possivelmente você – aprendi sobre o “descobrimento” do Brasil. Hoje, percebo adolescentes narrando tal fato histórico da maneira que aconteceu: uma invasão portuguesa, com a escravização dos indígenas – e não “índios” – e o início do extermínio dos povos originários.

Quando se conta a história a partir do olhar do colonizador, do opressor, ficamos presos a uma narrativa distorcida, que não condiz com a realidade e há, como Chimamanda Ngozi Adichie nos alerta, um perigo na história única, diretamente relacionada a poder[1]:

É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. (…) O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva.

Há um provérbio africano que diz: “enquanto os leões não contarem a sua história, prevalecerá a dos caçadores”. Por anos a fio, livros de história romantizaram diversos acontecimentos, como a escravização da população indígena e negra, que perdurou quase quatrocentos séculos. Como consequência da narrativa contada, ao revelarmos fatos e dados estatísticos, por exemplo, há um certo grupo que insiste em dizer que é “mimimi” ou fake news.

A história única, já nos ensina Chimamanda, cria estereótipos[2]. Ela nos traz como exemplo o continente africano, sempre retratado como local repleto de catástrofes, como se nada de bom tivesse. Nesta semana, em entrevista à participante do Big Brother Brasil Tina Calamba, uma angolana, enquanto a apresentadora Ana Maria Braga dizia “Angola é um país rico, com recursos naturais”, as imagens que passavam era de verdadeira destruição. De forma pouco sutil, reforçou-se o estereotipo daquele país africano.

nÉ exatamente isso o que acontece com os povos indígenas. Diversos estereótipos foram cunhados, como a imagem do “índio selvagem”. O homem branco seguia sua vida, sem se importar com o que acontecia com os povos originários. Apenas neste ano, com o atual governo, foi criado o Ministério dos Povos Indígenas, com Sonia Guajajara à frente da pasta. Ainda, pela primeira vez desde a criação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas – até pouco tempo chamada de Fundação Nacional do Índio – uma indígena é presidente, Joenia Wapichana. Por que tanto descaso com os primeiros habitantes de terra brasilis?

Acabamos de passar por mais um dia 07 de fevereiro em nosso calendário. Em quais mídias que você acompanha houve a divulgação de que esta data é o dia de luta dos povos indígenas? Desde 2008, ou seja, há exatos quinze anos, a Lei 11.696 instituiu esta data e pouco dela se fala. Em escolas, ainda vemos relatos de responsáveis de que, no dia 19 de abril, comemoram o “dia do índio”[3], com as crianças “homenageando” os “índios” colocando cocares e pintando seus rostos. Este estereótipo, reforçado em um lugar que deveria ser de aprendizado, é extremamente problemático e demonstra o despreparo e falta de interesse de instituições de ensino em aplicar uma outra lei, a 11.645, também já debutante, que determina a obrigatoriedade de inclusão da história e cultura indígena nos currículos escolares.

nEsta rica cultura ainda não é conhecida pela população em geral. Conhecemos, por exemplo, diversos líderes brancos que fizeram história. Foram construídos diversos monumentos e nomeadas ruas com personagens como Anhanguera e Borba Gato. No Parque Ibirapuera, em São Paulo, há uma estátua de Pedro Álvares Cabral, com uma citação de Tancredo Neves: “A Portugal devemos tudo: o nosso sangue, a nossa história, a origem das nossas instituições livres, o espaço amplo em que habitamos”. No entanto, conhecemos importantes indígenas, como Sepé Tiajaru, homenageado no dia 07 de fevereiro?

Líder indígena da chamada Guerra Guaranítica, Tiajaru foi morto em 1756, na Batalha do Caiboaté, em São Gabriel, no Rio Grane do Sul. Espanha e Portugal estabeleceram no Tratado de Madrid novas fronteiras para as suas colônias. Obviamente, não se preocuparam com os verdadeiros donos das terras, os indígenas, que receberam o recado de que teriam que sair do local. Não contavam com a resistência indígena: a República Guarani lutou. “Esta terra tem dono”, disse Tiajaru. No entanto, além do líder indígena, 1.500 indígenas foram mortos neste conflito.

Quantos indígenas já foram executados desde a invasão portuguesa? Quantos foram escravizados e assassinados? Atualmente, vem sendo noticiado o terror na terra dos Yanomami: desnutrição, contaminação por mercúrio, pneumonia, malária e garimpeiros ilegais no local. A denúncia, feita ainda no governo Bolsonaro, não surtiu qualquer efeito. Desde 1500, é possível constatar um verdadeiro genocídio. A Constituição deve ser aplicada e o processo de demarcação de terras não pode mais ser adiado. É preciso respeitar e garantir aos indígenas os direitos fundamentais dispostos na nossa Magna Carta.

Por que negligenciamos os povos originários, os primeiros habitantes de nosso país? Como sabiamente disse Célia Xakriabá, primeira deputada federal eleita por Minas Gerais, “antes do Brasil da Coroa, existe o Brasil do cocar”. E este Brasil deve ser preservado.

Notas de Rodapé

[1] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo da história única. São Paulo: Companhia das letras, 2009. pp. 22-23.

[2] Idem, p. 26.

[3] Apenas em 2002, com a promulgação da Lei 14.402, o “Dia do índio” foi substituído pelo Dia de Luta dos Povos Indígenas. Fruto do projeto de lei 5466/2019 de autoria de Joenia Wapichana, ele chegou a ser vetado totalmente por Jair Bolsonaro, com a infame justificativa de que a Constituição utiliza o termo “índios”. Em sessão conjunta do Congresso Nacional, o veto foi derrubado.

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