Perder a mãe: a busca pela Identidade arrancada pela escravidão

Saidiya Hartman e sua jornada de busca de identidade, memórias e reconstrução da história.

De onde você veio? Esta foi uma das atividades propostas por uma escola norteamericana. O objetivo era fazer com que as crianças compreendessem os graus de parentesco através de sua árvore genealógica.

No entanto, uma tarefa que parece em um primeiro momento simples – afinal, é só sentar com a criança e desenhar a sua árvore, com os nomes de avós, bisavós e por aí vai – para muitas se torna uma atividade extremamente dolorosa e penosa.

Como sou pesquisadora e escrevo sobre questões raciais e de gênero, quando soube desta atividade por meio de uma amiga, lamentei o fato de que muitas escolas ainda não tem o menor letramento racial. Explico.

No Brasil, temos há quase vinte anos uma lei que determina a obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira e indígena. No entanto, a prática não corresponde às bonitas letras da lei.

Nosso país, durante quase quatrocentos anos, trouxe em tumbeiros africanos e africanas para que aqui fossem escravizados. Com isso, estes que aqui chegaram à força e aqui permaneceram em situações desumanas, tiveram seus laços rompidos. Como seus descendentes saberiam suas origens? Como traçar agora, uma árvore genealógica de milhares de homens e mulheres, que sequer sabem de onde seus ancestrais foram arrancados, de onde os galhos de suas árvores foram podados?

História e Memórias

Em “Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão”[1], embarca em uma verdadeira viagem de retorno a Gana, procurando vestígios sobre sua família a partir do momento em que pisa nas mesmas trilhas séculos antes percorridas por escravizados.

A história de um país é feita de memórias. Memórias coletivas importantes para que saibamos de onde viemos e para onde queremos ir. Sabemos que por vezes, tenta-se apagar a história, maquiar fatos e esconder acontecimentos históricos. É por isso que sempre destaco a importância do trabalho de pesquisadores e pesquisadores, no resgate da memória coletiva.

A par da memória coletiva, temos também as nossas memórias, ou seja, acontecimentos de nossas vidas e das pessoas que amamos. Esta memória individual por vezes se mistura com a coletiva, já que “embora a memória coletiva extraia sua força e duração do fato de que um conjunto de homens lhe serve de suporte, são indivíduos que se lembram enquanto membros do grupo”[2].

A memória individual, além de importante para a construção da memória coletiva, é necessária para a identidade de cada pessoa. Quem foi sua avó? O que ela gostava de fazer? E seu bisavô, onde nasceu? A partir da colcha de retalhos que é a nossa árvore genealógica, formamos a nossa identidade, quem somos e de onde viemos. E isso foi negado aos descendentes de escravizados.

Identidade e Ancestralidade

Na peça “Embarque imediato”, escrita por Aldri Anunciação, podemos refletir sobre a importância da identidade, da cultura, da ancestralidade e, principalmente, de saber de onde se vem. Dois homens estão confinados em uma sala de segurança de aeroporto, em razão de problemas com o passaporte. Um deles, um senhor africano, é descendente de escravizados e o outro, um doutorando brasileiro a caminho da Alemanha. Percebemos quais foram as consequências da diáspora e dos séculos de tráfico negreiro[3].

Ao fazer este retorno à Gana através da Passagem do Meio[4], Hartman buscava reivindicar os mortos, se envolver com o passado. A escolha por este país se deu pelo fato de ter mais calabouços, prisões e celas de escravizados do que qualquer outro na África Ocidental.

Sobre a viagem de retorno, Hartman diz: “Eu sou a lembrança de milhões que cruzaram o Atlântico e de que o passado ainda não acabou. Eu sou a prole dos cativos. Eu sou o vestígio dos mortos”[5].

Quantos navios negreiros cruzaram o oceano, trazendo nas piores condições milhares de pessoas – homens, mulheres, crianças – acorrentadas, sem alimentação, em um lugar sem ventilação… Quantos perderam suas vidas já nesta rota – que de tanto despejar corpos ao mar, mudou a rota dos tubarões…

Aos que resistiram aos tumbeiros, perderam a mãe. O que restou foi o banzo.

Em palestra na UFRJ na quarta-feira, dia 30 de novembro, Hartman não se mostrava otimista quanto à possibilidade de cura[6]:

Eu voltarei à minha terra natal. Aqueles que desacreditam nessa promessa e se recusam a fazer tal juramento não tem escolha: só lhes resta admitir a perda que inaugura sua existência. E quem nega tal promessa se vincula a outras. Trata-se de perder a mãe. Sempre. Sempre.

Notas de Rodapé

[1] Saidiya Hartman é professora de literatura comparada na Universidade de Columbia e escritora, autora de “Vidas rebeldes, belos experimentos” (2019) e de “Perder a mãe”, lançado originalmente em 2006 e que ganhou edição brasileira em 2021.

[2] RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. São Paulo: Unicamp, 2007, pp. 133-134

[3] A peça faz parte da “Trilogia do confinamento”, escrita por Aldri Anunciação e chegou aos palcos com as brilhantes interpretações dos atores Rocco Pitanga e Antonio Pitanga.

[4] Nome da travessia feita por escravizados no Oceano Atlântico: o meio do caminho entre a captura em países da África e a chegada em colônias europeias.

[5] HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. p. 27.

[6] Idem. p. 126.

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