Por onde começo minha pesquisa?

Reflexões metodológicas a partir da preparação do curso “Mídia, crime e justiça”

Com a crescente consciência da complexidade da realidade social, torna-se cada vez mais evidente que nossa abordagem metodológica no processo de conhecimento precisa ser robusta, multifacetada e suficientemente adaptável para lidar com esses complexos processos interseccionais e sobrepostos.

Acho que qualquer estudante de graduação, ao ler o parágrafo acima, concordaria com seu conteúdo. Mas, para além do (estúpido, prejudicial e terrível) medo de ser julgado por não saber tudo, será mesmo que conseguiriam explicar o que tal parágrafo realmente significa?

Se você teve o privilégio de receber uma formação como a minha, é provável que tenha tido acesso a bons professores e a uma estrutura universitária adequada. No entanto, mesmo nessas condições, é possível que você tenha tido contato com a “metodologia” de maneira semelhante: através de alguma aula ou disciplina dedicada às normas da ABNT. Esse é, talvez, um dos maiores defeitos dos cursos de direito brasileiros – e, dada a lista de problemas, essa é uma boa briga. Dadas as circunstâncias, entretanto, talvez essa seja uma oportunidade adequada para considerar melhor os problemas que fundamentam essa denúncia.

Na semana de publicação deste artigo, apresentarei um breve curso para marcar o lançamento de uma nova turma da nossa pós-graduação em Direito Penal e Criminologia, produzida em parceria com o Curso CEI. Tratando da relação entre crime e mídia, pretendo conduzir uma análise crítica do discurso apresentado pelo programa Linha Direta, em sua nova temporada, a partir de seus objetivos declarados, de sua forma e, é claro, de sua relação com um determinado contexto histórico e cultural.

Como, durante minha exposição, pretendo compartilhar não apenas o resultado de minha pesquisa, mas também parte dos desafios daquele processo de conhecimento, imaginei que este seria o espaço ideal para servir de material de apoio ao curso. Espero que possa aprofundar algumas das questões que, pelas limitações da mídia “vídeo-aula”, não caberiam na própria aula. E, embora pudéssemos nos aprofundar em outros elementos do curso (o conceito de newsworthiness mereceria um artigo por si)[1], quero tomar a liberdade de endereçar a pergunta que costuma apavorar qualquer pesquisador – ou estudante – nas etapas preliminares de sua jornada de conhecimento: como devo começar?

Essa pergunta pode parecer, à primeira vista, trivial. E, para alguns, talvez até seja. O paradoxo, no entanto, começa a desvelar quando deparamo-nos com a necessidade de “colocar a mão na massa”.

Tendemos a conceber o conhecimento, aquilo que buscamos através da pesquisa, como algo que pode ser adquirido, como se fosse uma mercadoria pronta; pensamos em “ter” conhecimento[2]. Ao fazermos isso, entretanto, é como se tentássemos transformar relações sociais e processos de criação em objetos que existem independentemente de nós. Olhamos para um livro e proclamamos: “Ah, ali reside conhecimento!”, quando, na realidade, ali há, no máximo, a matéria prima para o que pode tornar-se conhecimento.

Embora possamos referir-nos ao conhecimento como um substantivo, uma caracterização mais transparente da sua natureza dar-se-ia por meio do conhecer. É dizer: para que uma informação vire conhecimento, ela precisa ser “conhecida”; precisa passar por um processo consciente de cognição, em uma ação criativa e, acima de tudo, produtiva.

Se concebemos o conhecer como um ato produtivo, começamos a perceber que, para que isso seja possível, precisamos de matérias-primas. E quais seriam essas matérias-primas do “conhecer”? Temos sistemas linguísticos, conceituais, culturais, entre outros. Transformando esses elementos em ferramentas, avançamos em direção ao mundo, prontos para trabalhar com outras matérias-primas, como dados, argumentos e afins. Assim, não só respondemos à pergunta de “como começar”, mas também inauguramos um novo entendimento do que significa, de fato, “conhecer”.

A produção de conhecimento, portanto, precisa ser compreendida como uma atividade essencialmente social. É um processo que depende de matérias-primas e meios de produção específicos: utilizando recursos culturais, linguísticos e conceituais, empregamos o conhecimento pré-existente para lidar com novas informações, dados e hipóteses[3]. É por meio desse processo – desse ato de produção, do trabalho[4] – que o conhecimento é reproduzido e transformado.

Reconhecendo que conhecer é um processo, devemos considerar, então, como conhecer; e, embora existam múltiplas formas de conhecimento, ao falarmos de conhecimento científico, devemos considerar os meios pelos quais passaremos a nos aproximar do nosso objeto, com o intuito de apreender sua estrutura e sua relação com outros objetos em um determinado período. Em essência, devemos considerar quais ferramentas são as mais adequadas para conhecermos tal objeto; ou seja, precisamos identificar qual metodologia utilizaremos para conhecê-lo.

Ao começar uma nova jornada, são múltiplos os caminhos possíveis, e nos deparamos com uma ampla gama de opções para chegarmos ao nosso objetivo. Diversas são as metodologias disponíveis para conhecermos os mais diferentes objetos, cada qual com suas peculiaridades, atrativos e limitações. Por vezes, ao iniciarmos a árdua jornada de pesquisa, somos inundados por esse turbilhão de opções, e ficamos sem saber por onde seguir – quase como aquela indecisão paralisante que toma conta de nós quando, diante de um catálogo aparentemente infinito de opções, não conseguimos decidir o que assistir na TV. Por isso, a tentação de escolher uma metodologia arbitrariamente – aquela que mais nos agrada, por exemplo – torna-se algo quase irresistível.

O que precisamos compreender, todavia, é que a seleção de uma metodologia não depende (apenas) dos nossos gostos; esta é, fundamentalmente, uma imposição ditada pelas características do objeto que pretendemos conhecer[5].

Em qualquer pesquisa, nós não devemos impor nada ao objeto; nós devemos retirar dele, buscando compreender as forças que o constituem. Embora não exista ciência neutra – afinal de contas, todo objeto é conhecido por um sujeito, o que torna impossível separá-lo do seu contexto pessoal e social –, quando nós pesquisamos, nós estamos querendo conhecer algo que é de uma forma, e não de outra. Por isso, o que define qual é a melhor metodologia para a nossa pesquisa não é a nossa predileção por A, B ou C, mas sim as características do objeto sendo pesquisado.

Consideremos a investigação de um fenômeno químico. A partir desse objeto, temos em nossas mãos uma diversidade de métodos à disposição, cada um adequado para explorar aspectos específicos desse objeto, em sua complexidade. Poderíamos, por exemplo, empregar a espectroscopia para desvendar as qualidades da relação entre matéria e radiação eletromagnética; alternativamente, poderíamos optar pela cromatografia, se desejássemos os componentes de uma determinada mistura. O objeto, portanto, é que delimita as opções que podemos (frutiferamente) utilizar para conhecê-lo.

Por essa razão, e finalmente respondendo à pergunta deste artigo, todo processo de conhecimento – seja um estudo, uma reflexão ou uma pesquisa – não deve dizer respeito à forma pela qual abordaremos nosso objeto; deveríamos inquirir, antes de mais nada, sobre a própria natureza do objeto que pretendemos conhecer. Como as aparências enganam, entretanto, conforme avançarmos no processo de conhecimento, frequentemente descobriremos que nossa metodologia original era inadequada para o objetivo pretendido – e, a partir dali, teremos que recomeçar todo o processo.

Tomemos o objeto de análise do curso dessa semana como exemplo. Em um primeiro momento, imaginei que este seria o Caso Eloá, como explicarei em minha exposição; conforme fui me aproximando deste objeto, entretanto, passei a reconsiderá-lo: aquela não era uma pesquisa sobre um sequestro, mas sim sobre a relação entre mídia, crime e justiça. O que me interessava, verdadeiramente, não eram as determinações do sequestro da menina Eloá, mas sim a representação midiática do caso – o que me interessava eram, portanto, os discursos criados sobre o caso Eloá.

Discursos são objetos complexos, ricos em nuances e envoltos em camadas de significado que podem ser desvendadas por uma análise detalhada de suas características positivas e negativas – afinal, o silêncio pode dizer muito. A partir dessa constatação, pude identificar um possível instrumento metodológico adequado a esse objeto: a análise de discurso.

A análise de discurso parte da premissa de que as palavras não são neutras em seus efeitos; elas trazem em si o peso do seu contexto, do seu enunciador e dos propósitos a que servem[6]. Nesse sentido, analisar o discurso vai além de uma análise meramente linguística. Trata-se, na verdade, de uma análise sociopolítica, onde cada palavra, frase e parágrafo nos dá pistas sobre a sociedade e a política que os geraram. Quando aplicada ao nosso objeto – a representação do Caso Eloá pelo programa Linha Direta –, a análise de discurso transcende o limitado âmbito da comunicação verbal, mostrando-se útil para uma consideração dos elementos auditivos, visuais e narrativos do programa.

Metodologias, enquanto tecnologias de conhecimento, não existem em isolamento. Embora, à primeira vista, uma metodologia robusta possa permitir, por si mesma, uma aproximação de um objeto, a qualidade de qualquer pesquisa será diretamente impactada pela consciência, clareza e coerência do trabalho em relação aos seus pressupostos; sobretudo em termos de uma pergunta crucial: como deve ser a realidade para que eu possa conhecê-la?

Cada um de nós adere, conscientemente ou não, a uma série de pressupostos acerca do que é a realidade. Para alcançarmos a coerência em nossos estudos, é imprescindível estarmos cientes desses pressupostos e conduzir nossa ação de conhecer de acordo com eles – isso, na verdade, é o que chamamos de método de conhecimento.

Embora comumente confundidos, método e metodologia não são sinônimos. Enquanto a metodologia se refere ao conjunto de ferramentas tecnológicas que utilizamos para conhecer um objeto, o método representa o instrumental teórico-analítico pressuposto pela atividade de conhecimento. Quando falamos em método, transcendemos questões eminentemente tecnológicas da metodologia, e consideramos aspectos teóricos, filosóficos e práticos, especialmente em relação aos modos de explicação, compreensão, natureza da abstração, design de pesquisa e métodos de análise[7].

Uma forma de visualizarmos como essa relação se dá, em termos práticos, é considerar como os pressupostos adotados por um pesquisador (seu método) produzirá resultados substancialmente distintos, ainda que se valha de uma mesma técnica de aproximação (metodologia). Embora a metodologia de análise de discurso tenda a pressupor a realidade como não limitada aquilo que podemos descobrir pelos sentidos (empirismo), sua configuração não permite, prima facie, diferenciar se os objetos aos quais faço referência na minha comunicação existem independentemente dela. Em uma posição social construtivista forte, a realidade é considerada como sendo fundamentalmente moldada pela interação social, a partir de suas reações; ou seja, o discurso não apenas reflete, mas também constitui uma realidade, independente da configuração do real. Por outro lado, um posicionamento social construtivista fraco parte do pressuposto que o mundo e o que conhecemos sobre ele são distintos: embora nosso conhecimento seja construído socialmente (porque processo produtivo), os objetos do nosso conhecimento não são produzidos por ele. Apesar do discurso moldar a nossa percepção da realidade, não é o discurso que cria a realidade em si.

Ao analisarmos discursos como os do curso – a reconstrução de casos criminais pelo programa Linha Direta –, uma mesma metodologia pode chegar, portanto, em dois resultados dramaticamente distintos: (a) o programa, ao comunicar que os casos aconteceram de uma determinada maneira, garante que nossa percepção da realidade será aquela e, assim, seu discurso constrói a realidade; ou (b) o programa, apesar de informar nossa percepção da realidade, ainda estará fazendo referência a algo que aconteceu de uma maneira, e não de outra (ainda que nunca a conheçamos).

Posto de outra maneira: se a metodologia é o aplicativo, o método é a conjunção entre o sistema operacional, a linguagem de programação e a base material do hardware.

O exercício de qualquer atividade científica, portanto, depende não apenas de uma preocupação eminentemente tecnológica, mas também das bases teóricas que respaldam nosso processo de conhecer, ou seja, de um método. O que antecede logicamente – embora (provavelmente) não temporalmente – a pergunta “como começar a conhecer?” é, portanto, “como deve ser a realidade para que possamos conhecê-la?”[8]. Esse “conhecer” que não se limita a uma atividade passiva de assimilação do conhecimento pré-existente, mas sim de um processo ativo, consciente e criativo de transformação/reprodução do mundo. É neste sentido que a produção de conhecimento é, em última instância, um ato social, dependente da interação entre nós, os pesquisadores, e o objeto de nosso interesse.

Na prática, as etapas iniciais de qualquer pesquisa costumam ser confusas e desafiadoras, sobretudo pela deficiência de formação a qual somos frequentemente sujeitados na universidade. Embora a tarefa de determinar nossos pressupostos possa parecer dantesca – e, não nos enganemos, pois ela é –, não podemos nos olvidar de que esse é um processo. Reconhecer a existência e a importância dos nossos pressupostos é o primeiro passo; e, conforme avançamos na jornada de descobrimento, devemos abordar esses desafios com humildade, resiliência e disposição para aprender.

Notas de rodapé

[1] CHIBNALL, Steve. Press Ideology: the politics of professionalism (1977). In: GREER, Chris (Org.). Crime and media: a reader. 1ª. ed. London: Routledge, 2010, p. 203–214.

[2] SAYER, Andrew. Method in social science: a realist approach. London; New York: Routledge, 1992. p. 16.

[3] COLLIER, Andrew. Critical realism: an introduction to Roy Bhaskar’s philosophy. 1ª. ed. London: Verso Books, 1994. p. 49.

[4] NETTO, José Paulo. Economia Política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006.

[5] NETTO, José Paulo. Introducao aos Estudos do Método de Marx. 1. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2011.

[6] FAIRCLOUGH, Norman. Language and power. 3 ed. London; New York: Routledge, Taylor & Francis Group, 2015.

[7] SAYER, op. cit.

[8] BHASKAR, Roy. A Realist Theory of Science. London ; New York: Routledge, 2013.

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