Segredos sob as águas: o tumbeiro Clotilda

Por quanto tempo consegue-se ocultar a história antes dela vir à tona?

Ao longo dos meus estudos sobre questões raciais, constantemente me pego com o mesmo pensamento: como fatos importantes da História – do Brasil e do mundo – foram ocultados e/ou apagados. Na escola, não estudamos como deveríamos a escravidão. No Brasil, foram quase quatrocentos anos do regime escravista, reduzidos a poucas páginas de livro escolar.

Apesar de quase vinte anos da Lei 10.639 de 2003, a inclusão nos currículos do ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Indígena ainda não foi feita como dispõe o referido diploma legal. Tenta-se ocultar importantes fatos que ocorreram durante séculos deste doloroso período, cujas consequências nefastas a sociedade – principalmente os descendentes de escravizados – sente até hoje.

A tentativa de apagamento do referido período sombrio não acontece apenas em nosso país. Nos EUA, a história do tumbeiro Clotilda só tomou projeções mundiais em 2020, quando finalmente seus destroços foram encontrados no Alabama.

“Para inglês ver”

No Brasil, antes da Lei de 13 de maio de 1888, tivemos leis na primeira metade do período oitocentista que tentaram proibir o tráfico negreiro, sem sucesso. Uma delas foi a Lei Feijó, de 1831, que passou a ser popularmente conhecida como “lei para inglês ver”, já que, na prática, o tráfico de escravizados continuava a todo vapor.

Nos EUA, o mesmo fenômeno ocorreu. Em 1808, uma lei proibiu a importação de escravizados, o que, na prática, não ocorreu. Em 1860, o tumbeiro Clotilda atracou em terras norte-americanas, com mais de cem escravizados a bordo.

Esta atrocidade foi possível porque o latifundiário e traficante de escravizados Timothy Meaher realizou a operação e, logo depois, incendiou a embarcação para destruir provas deste crime. Até hoje, a família de Meaher tem propriedades no local e ruas e avenidas levam o seu nome.

Africatown

Pouco depois da chegada de Clotilda, em 1865, com o término da longa e devastadora Guerra de Secessão, os ora libertos fixaram raízes em Mobile e a comunidade de Africatown ergueu suas casas. De geração a geração, através da oralidade, a história do tumbeiro é passada aos descendentes.

No entanto, a história de mulheres e homens como Cudjo Lewis, que tinha apenas 19 anos quando foi trazido acorrentado na embarcação, foi silenciada. Ninguém tinha interesse em fazer este crime vir à tona.

Quanto vale o testemunho de pessoas negras?

Apesar de termos testemunhas vivas daquele crime, apesar de termos depoimentos de seus descendentes, tudo foi acobertado na região, que inclusive, respirava opressão, com ruas e avenidas com o nome do algoz Meaher.

A voz de homens e mulheres negros não importava. No entanto, com o resgate de uma prova material, qual seja, os destroços da embarcação, não teria como simplesmente ignorar o acontecimento, que, apesar de presente na memória coletiva daquela comunidade, era negligenciado pela sociedade.

Parece que a oralidade, que o que tinha sobrado daquelas pessoas que foram arrancadas de África, nada valia[1]:

“Restos são o que sobrou de todas as vidas que estão à margem da História e ‘dissolvidas em completa amnésia’”.

Zora Neale Hurston, Cudjo Lewis e a Passagem do Meio

Nascida em 1891, no Alabama, Zora Neale Hurston é considerada a primeira cineasta negra dos EUA, cujo trabalho sempre girou em torno da luta antirracista.

Hurston foi importantíssima para deixar registrado o que, até então, vinha sendo transmitido oralmente: em 1927, vai até Africatown, no Alabama, entrevistar Cudjo Lewis.

Na época do encontro com Hurston, Cudjo já tinha 86 anos. O resultado do encontro pode ser lido em “Barrocoon – the story of the last Black cargo”, que deveria ter sido publicado em 1931, mas somente em 2018 isso ocorreu.

Por que motivo esta publicação demorou tanto a acontecer? Será que o fato de ter sido escrito por uma mulher negra, com depoimentos de um crime contra a humanidade totalmente vergonhoso e reprovável contribuiu para isso?

O livro de ficção escrito por Harriet Stowe, uma mulher branca, chamado “A cabana do Pai Tomás”, que aborda os horrores da escravidão, foi considerado o estopim para a Guerra de Secessão e vendeu muito. Praticamente na mesma época, aqui no Brasil, Maria Firmina dos Reis, uma mulher negra, publica anonimamente “Ursula”. Atualmente considerado o primeiro romance abolicionista, o romance havia sido totalmente apagado e foi encontrado fortuitamente apenas no século XX, na década de 60. Pessoas brancas não tem suas vozes silenciadas, algo que ocorre frequentemente com pessoas negras.

Voltemos ao Clotilda. A história era conhecida por toda uma comunidade. A escritora, cineasta e antropóloga Zora Neale Hurston escreveu sobre o único sobrevivente na época e, ainda assim, parecia que aquela Passagem do Meio[2] não tinha ocorrido.

Com a divulgação da “descoberta” (prova física, porque para os descendentes, não era preciso tal prova para o fato ter existido) do navio e imediata divulgação pela National Geographic, o mundo passa a conhecer mais um pedaço da “história que a História não conta”.

“Em toda sociedade escravista, os senhores procuraram erradicar a memória dos escravos”, diz Saidiya Hartman[3].

Eu vou além: em toda sociedade que vivenciou o sistema escravista como economia, de forma legal, há uma tentativa de apagamento deste período, uma vergonha do que foi feito com a vida, integridade física, saúde mental e física de milhares de pessoas. No entanto, o apagamento não é a solução para lidarmos com estes tempos que nos assombram até hoje.

O que você faz com este conhecimento?

Quanto ao Clotilda, o Museu Africatown Heritage House será construído. E sim, precisamos de lugares como este, que mantem viva a memória coletiva. Será que foi feita justiça? Longe disso.

É preciso colocar o holofote sobre a escravidão que, como Abdias Nascimento bem disse, foi um verdadeiro genocídio. É preciso conhecer fatos históricos e os reflexos deles para a sociedade atual. Ainda, é preciso que sejam implementadas políticas de reparação, compensação e não que se varra para baixo do tapete todas as provas deste mal que ainda nos assola.

Como bem disse um dos descendentes do Clotilda, no documentário “O último navio negreiro”, apenas a criação do lugar e fomento ao turismo não basta: “as pessoas vem e veem e depois, o que elas fazem com o que viram?”

O que você fará com toda a informação que você recebe é o mais importante. Vai refletir apenas por aqueles segundos ou vai fazer parte efetivamente da luta antirracista?

Notas de Rodapé

[1] SAIDIYA HARTMAN. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. 1 ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021. p. 147.

[2] Passagem do meio é o nome dado à travessia de pessoas escravizadas ao longo do Oceano Atlântico. O nome se dá em razão da jornada forçada se constituir como o meio do caminho entre captura de pessoas em África e chegada às plantations.

[3] Idem. p. 196.

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