O conteúdo político e a forma musical de Roger Waters

A primeira vez que vi Roger Waters, o icônico ex-baixista do Pink Floyd, foi em uma noite significativa: a véspera das eleições presidenciais do Brasil em 2018. Com o país à beira do abismo institucional que se seguiria, Waters mostrou-se um artista que não se fugiria do debate público. Naquele momento tenso, segundos antes de a lei eleitoral proibir qualquer tipo de propaganda política, Roger Waters posicionou-se contra o então candidato Jair Bolsonaro com um sonoro “Ele não”. A atitude foi audaciosa, sobretudo em uma cidade conservadora como Curitiba, dividindo opiniões no meio do show.

No dia seguinte, o Brasil elegeria Bolsonaro, um líder cuja gestão seria marcada por catástrofes em todas as searas possíveis e imagináveis – especialmente em relação à sua gestão da pandemia da Covid-19.

Manifestação de Roger Waters contra o então candidato à presidência, Jair Bolsonaro.
Manifestação de Roger Waters contra o então candidato à presidência, Jair Bolsonaro.

Para os fãs das letras intensamente políticas do Pink Floyd, a postura de Waters não foi uma surpresa. Ou não deveria ter sido; afinal de contas, o trabalho do artista sempre foi orientado por um posicionamento político claro, contrário às injustiças que enxergava no mundo. Essa é, inclusive, a força por detrás de sua expressão artística.

No entanto, mesmo alguém com a experiência pública (e política) de 80 anos de idade deve ter se perguntado, após sua turnê, sobre seu papel naquilo tudo. Podemos imaginar o que talvez tenha sido uma mistura de surpresa e frustração; muitos de nós sentimos o mesmo naquele fatídico dia.

Não sou tão idealista a ponto de acreditar que um único show possa alterar a complexa teia de fatores que influencia uma eleição. No entanto, ao assistir ao segundo show de Waters nesse último sábado, também em Curitiba, percebi uma mudança significativa na forma como ele estruturou o espetáculo – e, acima de tudo, na sua preocupação com o conteúdo e a forma de sua mensagem. Waters transformou seu concerto em um ato de comunicação muito mais eficaz, utilizando uma analogia com uma conversa de bar: um local onde encontramos os amigos, onde conhecemos novas pessoas e, acima de tudo, onde escutamos e discutimos nossas – e outras – ideias.

O começo do show já indicava que Waters não mediria palavras ou ações. Sua escolha em abrir o show com “Comfortably Numb” provavelmente não foi por acaso – nada costuma ser na arte. A canção, baseada na experiência do próprio Waters ao ser medicado com tranquilizantes para poder participar de um show em 1977, é uma representação brilhante do sentimento de desconexão e fuga da realidade – e dentro do contexto do show, torna-se uma crítica àqueles que escolhem ignorar as turbulências sociais e políticas ao seu redor.

Seguindo com “Another Brick in The Wall“, um hino contrário ao “autoritarismo” e um chamado à liberdade de expressão, Waters estabeleceu o tom de resistência e desafio que permeia muito do seu trabalho. Esta música, em particular, ressoa poderosamente em nossos tempos, mostrando os perigos das vis e cruéis manipulações que vivemos diariamente.

Ao entrelaçar essas músicas, Waters não estava apenas executando um setlist; ele estava conscientemente escolhendo hinos que refletiam sua postura política e social. Cada música, com seu contexto e nuances, contribuiu para uma narrativa maior que Waters queria compartilhar. Elas serviram como veículo para expressar suas críticas e preocupações, ressoando com a audiência que se encontrava diante de uma encruzilhada política significativa. O show, portanto, transformou-se em uma plataforma não apenas para entretenimento, mas para a comunicação de uma mensagem urgente e penetrante, destacando o poder da música como uma forma de protesto e chamado à ação.

O show foi uma viagem por temas como capitalismo, opressão, racismo e conflitos específicos como o de Israel e Palestina. Além de prestar tributo às vítimas de injustiças globais, Waters não poupou críticas a presidentes dos EUA pelos crimes de guerra que cometeram.

Na minha opinião, o que se destaca nessa nova abordagem foi o cuidado de Waters – e sua equipe – em garantir que sua história fosse contada de maneira clara e acessível. Lembrando de 2018, me pergunto se ele não quis que sua mensagem fosse não apenas ouvida, mas compreendida por todos. O show se desdobrou como um espetáculo auditivo e visual, com um sistema de som imersivo e uma profusão de imagens impactantes, reforçadas por legendas explicativas e comentários carismáticos do próprio Waters.

Este concerto foi uma verdadeira aula em storytelling, demonstrando como a educação e a mudança de perspectivas podem ser alcançadas através de uma narrativa poderosa. Contrariando a crença popular de que o ativismo político pode desviar a arte de sua essência, acredito que foi exatamente o engajamento político de Waters que tornou o show memorável.

Talvez, após a eleição de 2018, Waters tenha refletido sobre o poder de sua influência e sobre como tantas pessoas poderiam estar juntas em um espaço e ainda assim não captar a essência de sua mensagem. Ele retornou com uma performance de majestosa potência, não apenas apresentando sua música, mas também traduzindo e destilando sua mensagem, ilustrando-a de maneiras que transcenderam o auditivo e penetraram o visual.

A jornada de Waters desde aquele momento até o seu show recente é uma prova de que a mudança depende não apenas da mensagem em si, mas de como ela é entregue. Neste caso, Roger Waters emergiu não apenas como um músico lendário, mas como um mensageiro habilidoso cuja evolução no palco reflete a urgência e a necessidade de crítica aos absurdos que estamos vivenciando mundialmente. Seu show não foi apenas um evento para ser vivenciado, mas uma lição sobre a importância de se comunicar de forma que não apenas entretenha, mas também eduque e inspire ação transformadora.

Através da combinação de música, imagens e palavras, Waters nos mostrou que a arte só faz sentido enquanto ferramenta para conectar corações e mentes em busca de um mundo melhor.

Outros artigos

Continue seus estudos

Darcy Ribeiro
Introcrim
Caio Patricio de Almeida

Darcy Ribeiro

O legado de luta e esperança