As aventuras de Karl Marx contra a Baronesa Thatcher

Inglaterra, 1987: Dia das Bruxas. A revista Woman’s Own (1932-) considerou oportuno publicar uma extensa entrevista com Margaret Thatcher (1925-2013), então Primeira-ministra do Reino Unido. É provável que as gerações posteriores não a tenham lido, mas dela tomaram algum conhecimento, ainda que indireto, pois foi justamente daquela bateria de perguntas e respostas que se extraiu um dos postulados-chave do credo neoliberal – ou, melhor dizendo, paleoliberal: “a sociedade não existe; o que existe são indivíduos”[1].

Anos antes, um liberal erudito e astuto já havia compreendido o que estava em curso, razão pela qual denunciou a impertinência histórica de empregar-se o prefixo “neo-” a algo que não era nada mais que a encarnação de uma tendência regressiva do capitalismo: onde a “estadofobia” caminha de mãos dadas com a retórica do livre-mercado, o que se tem está longe de ser uma novidade, e sim “a reprise do paleoliberalismo”[2], com seus arautos fazendo as vezes de um Spencer redivivo, a protestar pelo retorno do laissez-faire dos idos de 1850 e 1860.

De fato, a contraposição entre indivíduo e sociedade, além de metodologicamente estéril e ontologicamente falsa, não constitui mero equívoco lógico-conceitual; antes expressa, no plano material, a afirmação de uma política econômica voltada para a promoção de interesses privados em prejuízo das massas vulnerabilizadas. Em suma: privatizar lucros, socializar prejuízos.

Recorrendo à tradição marxista, as primeiras notas marxianas de crítica da economia política já haviam predisposto algo que os paleoliberais parecem não enxergar[3]:

“Acima de tudo é preciso evitar fixar mais uma vez a ‘sociedade’ como abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. Sua manifestação de vida – mesmo que ela também não apareça na forma imediata de uma manifestação comunitária de vida, realizada simultaneamente com outros – é, por isso, uma externação e confirmação da vida social.”

Karl Marx

Se nenhum homem é uma ilha, este tipo de “robinsonada”[4] só tem lugar na imaginação de uns quantos reacionários, teimosamente detidos na aparência estética do objeto que pretendem descrever. De posse da teoria social e do método marxianos, o ser humano é entendido tal como ele efetivamente é: um ser biossocial, que, apesar de compartilhar com todos os outros animais as mesmas necessidades mundanas, as satisfaz de modo singular, pelo trabalho; pela sua intervenção criativa e criadora na natureza. Portanto, não surpreende que Marx tenha tomado o modo de produção e reprodução da vida material como o ponto de partida de sua investigação.

Thatcher, seus antepassados e descendentes negam a existência da “sociedade como tal” por considerarem-na uma mera abstração, mas afirmam, concomitantemente, a existência de outras abstrações similares: “o indivíduo”, “a família” e quanto mais se queira. Na chave heurística marxiana, todos esses conceitos são submetidos a um rigoroso escrutínio crítico, de modo que se possa apreendê-los materialisticamente. Afinal[5]:

“A sociedade não consiste de indivíduos, mas expressa a soma dos vínculos, relações em que se encontram esses indivíduos uns com os outros. É como se alguém quisesse dizer: do ponto de vista da sociedade, não existem escravos e cidadãos: ambos são seres humanos. Pelo contrário, são seres humanos fora da sociedade. Ser escravo e ser cidadão são determinações, relações sociais dos seres humanos A e B. O ser humano A enquanto tal não é escravo. É escravo na e pela sociedade.”

Karl Marx

E mais[6]:

“O fato é, portanto, o seguinte: indivíduos determinados , que são ativos na produção de determinada maneira, contraem entre si estas relações sociais e políticas determinadas. A observação empírica tem de provar, em cada caso particular, empiricamente e sem nenhum tipo de mistificação ou especulação, a conexão entre a estrutura social e política e a produção. A estrutura social e o Estado provêm constantemente do processo de vida de indivíduos determinados, mas desses indivíduos não como podem aparecer na imaginação própria ou alheia, mas sim tal como realmente são, quer dizer, tal como atuam, como produzem materialmente e, portanto, tal como desenvolvem suas atividades sob determinados limites, pressupostos e condições materiais, independentes de seu arbítrio.”

Karl Marx

Pela experiência imediata, o emaranhado de fenômenos com os quais os indivíduos se defrontam cotidianamente aparece, no mais das vezes, como ocorrências fragmentárias, dissociadas umas das outras. Nossas relações de sociabilidade se destacam por um agudo dinamismo, e quase sempre estamos apressados ou cansados demais para refletir sobre nossas práticas mais comezinhas. Seguimos satisfazendo (ou tentando satisfazer) nossas necessidades mundanas – alimentação, locomoção, habitação etc. –, mas raramente consideramos a amplíssima gama de processos materiais que, porquanto interconectados, são imprescindíveis para que o pão chegue à mesa, para que nós cheguemos ao nosso destino e para que tenhamos um lugar para morar. Só o que aparece é a mediação artificial e universalizada do dinheiro: “comi X, cheguei a Y e moro em Z porque paguei por isso”. Entrementes[7]:

“Aquilo que parece, e aparece como, descoordenado, desligado, aleatório, ou até mesmo como irracional, acaba, no fundo, por constituir uma unidade. Não uma unidade simples, linear, idêntica; mas uma unidade em concreto determinada, no seu teor e na sua deveniência, segundo uma multiplicidade de instâncias, uma complexidade de relações, e uma contraditoriedade de elementos.”

Eis aqui o último pressuposto ontológico de Marx: a vida social é uma totalidade. De acordo com os delineamentos de Lukács, uma totalidade é um complexo de complexos[8], em que a menor unidade é, em si, de enorme complexidade. Adotando uma linguagem mais contemporânea, poder-se-ia dizer que uma totalidade é um sistema de (subs)sistemas. E como investigá-los? Este é, precisamente, o tema dos próximos artigos…

Notas de rodapé

[1] (Trecho ampliado) “Acho que passamos por um período em que muitas crianças e pessoas foram levadas a entender ‘eu tenho um problema, é função do governo lidar com isso!’ ou ‘tenho um problema, buscarei uma bolsa para lidar com isso’, ‘sou um sem-teto, o governo deve me abrigar’, e então estão lançando seus problemas na sociedade. E quem é a sociedade? Inexiste tal coisa! O que existe são homens e mulheres individuais e famílias, e nenhum governo pode fazer nada, exceto por meio das pessoas, e as pessoas olham primeiro para si mesmas.” Cf.: https://www.margaretthatcher.org/document/106689

[2] MERQUIOR, José Guilherme. O argumento liberal. 1ª. Ed. São Paulo: É Realizações, 2019, p. 85.

[3] MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. Trad.: Jesus Ranieri. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 107.

[4] MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. 2ª. Ed. Trad.: Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2008, pp. 237-238.

[5] MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. Trad.: Mario Duayer e Nelio Schneider. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011, p. 205.

[6] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Trad.: Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 93.

[7] BARATA-MOURA, José. Dialéctica marxista. Lisboa: Edições Avante!, 2010, p. 8.

[8] Cf.: LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social, II. Trad.: Nelio Schneider, Ivo Tonet e Ronaldo Fortes. São Paulo: Boitempo, 2013.

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