Um convite à leitura de Kafka

Parte 2: forma e conteúdo
  1. Retomando o convite

               No início deste semestre, publiquei um breve ensaio sobre a importância de Franz Kafka para além da manifesta crítica deste autor ao mundo jurídico. Ao escrever, percebi que as reflexões propostas não poderiam se resumir ao livro mais conhecido pelos estudantes de Direito, O Processo, exigindo uma breve incursão na totalidade de sua obra, como forma de demonstrar a importância da forma e do conteúdo em seu acervo literário. Conclui da seguinte forma:

“Em Kafka, o indivíduo não é o átomo do convívio social, gozando de sua liberdade para atingir a realização pessoal. Os sujeitos kafkanianos são pessoas oprimidas por forças objetivas e de difícil compreensão, reduzidas à posição de objeto impotente diante do absurdo de uma realidade em transformação. Esse ponto de partida é, em realidade, um convite. Um convite a ler e discutir Kafka, sua importância e contribuição jurídica, sociológica, literária e criminológica, enquanto um autor historicamente situado e que, contra sua vontade, alertou-nos sobre o que espreitava no horizonte.”

               É precisamente este o ponto que gostaria de retomar. O convite à leitura e reflexão crítica sobre a obra de Kafka que, não por acaso, consagrou-se com um dos maiores nomes da literatura universal do Século XX. E isso, como espero demonstrar, decorre de sua maestria na conjugação entre a forma novelística e o conteúdo que assume os contornos de um realismo fantástico orientado à descrição de uma perturbadora ordem social em que o absurdo e o cotidiano se sobrepõem.

  1. A forma novelística

               Se ultrapassarmos a aparência da crítica – à forma jurídica, à organização estatal burocrática e ao sistema de justiça criminal como um todo – percebemos, em Kafka, talvez o melhor exemplo do uso da forma novelística enquanto mecanismo de compreensão da realidade.[1] Diferente do que ocorre com a produção de romances literários, em que existe uma pretensão de totalidade da representação social,[2] a novela caminha em sentido oposto, partindo de um relato pontual e anedótico – um ponto focal, em termos lukacsianos – exasperado a ponto de representar uma abstração da realidade social nele compreendida.[3]

               É o que vemos em seu texto mais famoso, A Metamorfose. O relato se inicia a partir da fantástica transformação de Gregor Samsa em um indefinido inseto gigantesco e se desdobra no impacto desse evento em suas relações profissionais e familiares. A situação narrada apresenta, simultaneamente, uma dimensão extraordinária e outra absolutamente ordinária, sobrepostas e resultantes no drama pessoal vivido pelo protagonista. O elemento fantástico, característico do autor, atua como representação abstrata de medos concretos, comumente derivados de pressões externas exercidas sobre a personagem em duas frentes: as relações familiares ou interpessoais e o mundo laboral. Gregor Samsa sofre por não compreender a condição que o acomete, mas este ponto focal é apenas o início do problema, que rapidamente se desloca para duas outras questões: como manter as relações familiares – no caso específico desta obra, de cunho quase parasitário, em que o protagonista é o único a prover recursos para sustento da família – e, ainda mais importante, como retornar à rotina de trabalho e atender as exigências que lhe são impostas pelo mundo exterior, pouco importando sua condição pessoal atual.

               O corpo insectoide é o obstáculo que impede Samsa de dar seguimento à sua rotina, retomar as atividades de caixeiro viajante e, com isso, novamente sustentar seus pais e sua irmã. Aos poucos, porém, este objetivo se revela cada vez mais improvável, conforme o protagonista percebe o agravamento e consolidação de sua metamorfose. Até o ponto em que, mesmo a única pessoa com quem manteve certos vínculos após o evento fantástico – sua irmã – deixa de o perceber enquanto pessoa transformada e passa a o enxergar como uma peste a ser exterminada. A repulsa se dá tanto pela sua forma física quanto pela incapacidade de se adequar às exigências produtivas impostas sobre todos.[4]

               O mesmo recurso novelístico pode ser observado nas demais obras célebres de Kafka. Em O Processo, Josef K. se vê acusado por fatos que desconhece e, ao longo do período de aproximadamente um ano em que a história transcorre, encontra-se dividido entre dar continuidade às atividades que lhe são exigidas enquanto funcionário do banco e lutar contra a condenação inevitável que se avizinha. Aos poucos, percebe que o misterioso tribunal encarregado de decidir sobre seu destino não é uma instância isolada, mas integrada ao universo laboral e pessoal da personagem. A nítida sensação de sufocamento, manifesta tanto na arquitetura opressiva dos ambientes judiciais, quanto na permanente intrusão de conhecidos e desconhecidos que orientam Samsa sobre como melhor agir perante seus julgadores, exaspera-se quando, após visitar a catedral da cidade e ouvir sobre a parábola da porta diante da justiça, é revelado ao protagonista que todos ao seu redor – amigos, familiares, colegas de trabalho –  integram o tribunal.[5]

  1. O conteúdo fantástico

               A forma novelística se revela especialmente potente na condução de narrativas que provocam, a um só tempo, estranheza e semelhança. O fantástico é a forma de representação do real, não um escape à realidade. E a realidade exposta por Kafka é a de um mundo no qual os indivíduos se vêm progressiva e opressivamente reduzidos a meros instrumentos laborais, alienados e invadidos em sua esfera íntima por um mundo novo que se consolidava na transição do século XIX ao XX.[6] Um mundo de alienação e fetichismo, próprio de um capitalismo monopolista que sobrepunha novos conteúdos sobre formas antigas e cujo impacto sobre o cotidiano e sobre a dimensão individual foi antecipado na literatura, permanecendo até hoje uma das mais perturbadoras descrições das angústias inerentes à realidade posta.

Notas de rodapé

[1] CARPEAUX, Otto Maria. História da literatura ocidental, vol. III: do ‘fin du siècle’ às tendências contemporâneas. Campinas: Sétimo Selo, 2021, p. 555.

[2] COUTINHO, Carlos Nelson. Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 152-153.

[3] OTSUKA, Edu Teruki. LUKÁCS, REALISMO, EXPERIÊNCIA PERIFÉRICA (ANOTAÇÕES DE LEITURA). In: Literatura e sociedade, vol. 15, n. 14, São Paulo: USP, 2010, p. 36-45.

[4] KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

[5] KAFKA, Franz. O Processo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

[6] COUTINHO, 2005, p. 165-166.

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