Uma nova política de drogas?

O futuro da política de drogas a partir do julgamento do STF

Eu estava no segundo ano da faculdade de direito quando o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral do tema da constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006). Era 2011 e a euforia pelos corredores do prédio histórico da Federal do Paraná era evidente – por motivos acadêmicos, claro. Em 2015, já recém-formada, foi quando começou o julgamento do Recurso Extraordinário n. 635.659/SP.

Os primeiros votos de fato geraram alguma esperança de um futuro em que o porte de drogas para consumo pessoal fosse descriminalizado. A minha impressão, como de muitos naquele momento, era de que esse era um passo inicial para uma nova política criminal de drogas no Brasil. Uma década depois, tenho mais dúvidas que certezas sobre os caminhos da política criminal brasileira em relação às substâncias tornadas ilícitas.

Nunca é demais lembrar que política criminal não se faz somente a partir do direito penal, mas a partir da construção de uma rede de políticas públicas diversificadas, mas organizadas e coordenadas entre si para dar conta do problema complexo que é o crime nas sociedades contemporâneas[1]. Pensar política criminal direcionada para a questão específica das drogas requer especial atenção, em função de uma série de fatores.

Em primeiro lugar, uma discussão sobre quais seriam as razões para tornar ilegal o consumo, produção e circulação de determinadas substâncias[2] que alteram processos bioquímicos do organismo humano, provocando estados alterados de consciência e comportamento. Em segundo lugar, a razão pela qual determinadas substâncias são tornadas ilícitas e outras não, segundo critérios nem sempre claros e que, no geral, contrariam as pesquisas mais modernas sobre drogas: por um lado, drogas lícitas (como o álcool) apresentam resultados muito mais perigosos para o ser humano do que drogas ilícitas; por outro lado, a neurociência, a psicologia e a sociologia convergem para identificar a adição como um elemento multifatorial, e não uma qualidade intrínseca a determinada substância[3].

Em terceiro lugar, e mais importante para o contexto do julgamento específico do RE 635.659/SP: a discussão sobre drogas não se limita ao direito penal – ou sequer ao direito. Decidir se a lei deve o não punir um determinado comportamento tido, a priori, como socialmente reprovável, implica ingressar na esfera das discussões sobre liberdade individual e o direito de autodeterminação e desenvolvimento do sujeito na sua busca por felicidade[4]. Faz necessário, também, entrar em debates sobre saúde pública e sobre saúde coletiva. Por fim, implica, por óbvio, compreender que a manutenção do dispositivo em questão (o artigo 28 da Lei de Drogas) tem efeitos sobre o sistema de justiça criminal e sobre os processos de criminalização.

Significa, portanto, que decidir sobre a constitucionalidade ou não da criminalização do porte de drogas para consumo pessoal, não apenas deve considerar os argumentos já trazidos pelos quatro votos favoráveis à descriminalização, mas deve passar também pela revisão de políticas públicas de naturezas distintas. Não se trata apenas de descriminalizar o uso, mas de adotar uma política de drogas em que ainda se criminaliza o comércio e a produção, mas não o consumo. Para isso, deve-se avançar na tentativa de distinguir, de maneira tanto mais objetiva quanto for possível, o traficante do mero usuário – mas isso tudo também implica uma revisão de políticas públicas que permitam ao indivíduo concreto gozar de seu direito enquanto usuário, eventual ou contumaz, de maneira ampla e irrestrita.

A pequena quantidade de maconha encontrada na mochila de um jovem negro que desce da Rocinha à praia de São Conrado deverá ser tolerada da mesma forma que o transporte da erva por uma pessoa branca em um voo doméstico. As autoridades responsáveis pela formulação e execução de políticas públicas de saúde deverão reconhecer a diferença entre usuários eventuais ou recreativos, daqueles que sofrem com adição, admitindo que o uso da substância pode ser uma escolha consciente do indivíduo. Caberá ao Estado informar a população sobre os efeitos dessas substâncias, que permanecem ilícitas, mas cujo uso é descriminalizado. Além disso, descriminalizar o uso de uma substância que se mantém ilícita cria a necessidade de revisar a própria ilicitude da substância, questionar os atos administrativos que regulam essa substância.

E, é claro, os efeitos de uma eventual (e talvez possível) declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 também devem ser considerados em relação à política penal de maneira estrita. Descriminalizar o uso demanda repensar, no futuro ou pelo menos de forma preliminar, a criminalização da produção e da comercialização da substância. Além disso, para evitar que mais um mecanismo de redução do poder punitivo seja transformado em engrenagem de ampliação do alcance do direito penal, é preciso que se opere uma presunção de uso, não de traficância. Essa é uma inversão que parece impossível, dada a quase absoluta confiança do sistema de justiça criminal na palavra do policial. Uma quebra radical dessa confiança é necessária para efetivar materialmente a decisão que vem se desenhando no Supremo Tribunal Federal.

Eu quero receber com esperança os quatro votos pela descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal que já foram dados no julgamento do RE 635.659/SP. São mais de dez anos acompanhando a discussão – e me perguntando quantos mais ainda virão. Bem por isso sei que esse julgamento dificilmente será o catalisador das mudanças necessárias que deveriam acompanhar a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas. Mas se tenho mais dúvidas que certezas, a certeza de estarmos caminhando na direção certa é o que me ampara.

Notas de rodapé

[1] Neste sentido, entre outros: BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999; BATISTA, Nilo. Capítulos de política criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2022; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. 10ª edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2022.

[2] OLMO, Rosa. La cara oculta de la droga. Bogotá, Colombia: Editorial Temis, 1998.

[3] HART, Carl L. Drug use for grown-ups: chasing liberty in the land of fear. New York, EUA: Penguin Press, 2021.

[4] HUSAK, Douglas. Legalize this! The case for decriminalizing drugs. Londres, Inglaterra: Verso, 2002.

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