A vez de ouvir os malês

188 anos da grande Revolta contra a escravidão (e ainda pouco conhecida).

É inegável que o povo brasileiro pouco conhece sobre a história do seu país. Em pleno 2023, há quem ainda fale em “descobrimento” do Brasil e quem acredite que a abolição da escravidão se deu em razão da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel.

Na minha época de escola, uma das minhas matérias preferidas era justamente História, dividida em História Geral e História do Brasil. Esta última, tinha um lugar especial. Acreditava – como acredito ainda hoje – que é importante conhecermos o nosso passado para compreendermos o momento atual do país e como poderemos fazer para torná-lo um lugar melhor, a curto, médio e longo prazo.

Eu me lembro até hoje do dia em que estudamos em sala a Cabanagem, a Sabinada e a Balaiada. Foram exatas duas páginas do livro didático (menos até, se levarmos em consideração as imagens) para abordar eventos históricos importantes em nosso país. E teve uma Revolta que sequer ganhou mais do que algumas linhas, apesar de ser considerada uma das mais importantes do Brasil escravista: a Revolta dos Malês.

Fui compreender a importância da Revolta dos Malês apenas em 2006, quando foi lançado Um defeito de cor, livro de Ana Maria Gonçalves. O romance histórico é resultado de intensa pesquisa da autora e, em suas mais de novecentas páginas, nos traz as memórias de Kehinde, mulher africana, nascida no reino de Daomé, que foi escravizada.

Através de Kehinde, entramos em contato com a figura histórica de Luíza Mahin, mãe do importante abolicionista Luiz Gama e umas das líderes da Revolta dos Malês. Infelizmente, como muitos e muitas, não temos registros sobre Mahin, não temos sequer fotos dela. O pouco que sabemos é a partir de Gama, que, além de ter escrito o poema Minha mãe, em carta escrita a Lúcio de Mendonça, datada de 25 de julho de 1880, a menciona[1]:

Sou filho natural de uma negra, africana livre, da Costa Mina (Nagô de Nação) de nome Luíza Mahin, pagã, que sempre recusou o batismo e a doutrina cristã. Minha mãe era baixa de estatura, magra, bonita, a cor era de um preto retinto e sem lustro, tinha os dentes alvíssimos como a neve, era muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa. Dava-se ao comércio – era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram efeito.

Caso o abolicionista Luiz Gama não tivesse escrito sobre sua mãe, possivelmente não a conheceríamos. Quantas mulheres e homens negros que lutaram e contribuíram para a história deste país ainda desconhecemos? Um exemplo foi a escritora Maria Firmina dos Reis, autora de Úrsula, primeiro romance abolicionista brasileiro (já escrevemos sobre ela aqui na coluna) e que somente na década de 1960, saiu do apagamento.

Infelizmente, ainda não é aplicada como deveria a Lei 10.639/2003, que tornou, há vinte anos, obrigatório o ensino da cultura e história africana nos currículos escolares. Com isso, crianças e adolescentes não conhecem figuras tão importantes como Luiz Gama e Luíza Mahin. Ainda, diversos mitos continuam sendo propagados, por exemplo, o de que escravizados eram passivos e se contentavam com o seu cruel destino. Quando temos contato com o trabalho de historiadores e historiadoras, começamos a compreender que há, de fato, uma “história que a história não conta”, como, por exemplo, as inúmeras insurreições, levantes e revoltas que ocorreram no território brasileiro contra a escravidão.

A Bahia foi um dos estados brasileiros que mais recebeu escravizados e, só na primeira metade do século XIX, foi palco de trinta revoltas[2]. A mais importante, foi, sem dúvidas, a que aconteceu da madrugada de 24 para 25 de janeiro de 1835, na capital de Salvador: a Revolta dos Malês. Na época, a capital baiana era composta por 65.500 habitantes. Destes, 40% eram escravizados e a população livre era, em sua maioria, formada por africanos e descendentes[3]. Era a tempestade perfeita.

A revolta, que se insurgiu contra a escravidão, a discriminação racial e o racismo religioso, contou com a participação de 600 escravizados, sendo a maioria muçulmana e, por isso, foi acordado para que ocorresse ao final do Ramadã. Inclusive, a palavra malê em Yorubá significa muçulmano. Era preciso que estes rebeldes servissem de exemplo: afinal, o medo de que o que ocorreu no Haiti se tornasse realidade em terra brasilis começou a tomar conta da Casa Grande. Como resultado de um levante que durou apenas horas, setenta africanos morreram e líderes tiveram severas punições, como prisão, açoite, deportação e execução por fuzilamento.

Não vi relevante destaque na mídia sobre a Revolta dos Malês ao longo desta semana, infelizmente. Percebo que caminhamos a passos lentos para darmos a importância devida a acontecimentos históricos como este, que tanto contribuiu para o fim da escravidão. Acredito também na importância da arte para aproximar a história da população.

Vem chegando fevereiro e com ele a maior festa popular: o carnaval. É inegável a contribuição dos enredos de escolas de samba, como o da Estação Primeira de Mangueira de 2019, para colocar um holofote em momentos históricos que não deveriam ser apagados e omitidos. Afinal, já passou da hora de conhecermos a história que a História não conta![4]

Notas de Rodapé

[1] FERREIRA, Ligia Fonseca. Com a palavra, Luiz Gama. São Paulo: Imprensa Oficial, 2011. p. 199.

[2] REIS, João José. Revoltas Escravas. In.: SCHWARCZ, Lilia Moritz e GOMES, Flávio (org.). Dicionário da escravidão e liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 393.

[3] REIS, João José. A revolta de 1835. Disponível em: http://educacao3.salvador.ba.gov.br/adm/wp-content/uploads/2015/05/a-revolta-dos-males.pdf Acesso em 25 jan. 2023.

[4] Trecho do samba enredo Histórias para ninar gente grande, da Estação Primeira de Mangueira de 2019. Disponível em: https://www.letras.mus.br/wantuir/historias-para-ninar-gente-grande/ . Acesso em 26 jan. 2023

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