A política criminal do rodeio

Paris deixou de ser uma festa. De umas muitas décadas para cá, a obsessão francófila foi, aos poucos, minguando, até se ver reduzida a uma peculiaridade de alguns grupos de intelectuais e artistas. Quem, então, passou a ditar a moda e a voga, a constituir o cerne das nossas aspirações miméticas, o modelo de país invejável, foram os Estados Unidos.

Há quem resista ao bombardeio cultural com notável dignidade, mas também há os que investem na resistência extremada, um tanto caricatural e um quanto paranoica, rejeitando, aprioristicamente, tudo que venha daquelas bandas. Nem tão lá, nem tão cá. Afinal, é perfeitamente possível criticar a hegemonia cultural estadunidense sem, com isso, ter de abrir mão dos filmes de Scorcese e Coppola, dos livros de Baldwin e McCarthy, das canções de Cash e King.

Agora, no que concerne à política criminal, nos vemos quase forçados a aderir àquela posição extremada. Frise-se: quase. Não se trata de um juízo apriorístico, mas da simples constatação de que, do exame das estratégias de política criminal implementadas nas últimas décadas e exportadas para países de capitalismo dependente, verifica-se que os Estados Unidos ocupam, de fato, um lugar central na história criminológica contemporânea – e nunca nas melhores páginas.

Poder-se-ia exemplificar com a Lei Seca, com as experiências de Lei e Ordem e de Tolerância Zero, ou mesmo com a contemporaneíssima política criminal atuarial. Contudo, uma vez que já há diversos trabalhos de altíssima qualidade sobre cada um desses temas, optemos por um caso pouco conhecido, curiosamente negligenciado por todas as principais obras de referência disponíveis: o da Penitenciária Estadual da Louisiana[i].

Fundada em 1835, a penitenciária foi erigida em Baton Rouge, atual capital do estado. Poucos anos mais tarde, reconhecendo-se incapaz de garantir a autossuficiência econômica da instituição, o estado optou por celebrar uma parceria público-privada, arrendando a força de trabalho dos condenados para a McHatton-Pratt & Company.

Em 1870, cinco anos após o ocaso da Guerra de Secessão, Samuel L. James (1834-1894), ex-major do Exército dos Confederados, torna-se o novo beneficiário do arrendamento, instaurando uma nova dinâmica de trabalho, consoante às suas opiniões racistas: uma parte dos presidiários negros ficaria encarregada da construção de diques, ferrovias e estradas, outra, seria deslocada para propriedades rurais, de modo a suprir a ausência de força de trabalho escravo; quanto aos brancos, tidos por intelectualmente superiores, se limitariam a atividades escriturárias e ao artesanato.

E não parou por aí: James começou a adquirir diversas propriedades rurais em todo o estado da Louisiana, uma das quais atendia pelo nome Angola, em alusão ao país originário do maior contingente de escravizados africanos. Nesta última, ele alocou parte dos presidiários, então submetidos a uma jornada de trabalho tão desumana que os casos de óbito começaram a multiplicar-se.

Por pressão da opinião pública, a hipótese de arrendamento de força de trabalho de réus condenados acabou sendo banida pela Constituição do Estado (1898). Todavia, com a reintegração do campo de prisioneiros ao controle estatal, não desapareceram os problemas de gestão, que permaneceram uma constante dor de cabeça. Foi então que a gerência do presídio foi entregue a Henry L. Fuqua[ii] (1865-1926), que implementou o regime de guardas de confiança, com vistas à redução dos custos administrativos: dispensando boa parte dos agentes de segurança, os oficiais passaram a ser, então, os presos que demonstrassem bom comportamento.

Com a catastrófica enchente de 1922, surgiu uma nova oportunidade: Fuqua propôs que os fazendeiros das regiões circunvizinhas vendessem suas propriedades para o estado, o que acabou resultando num lote de 18.000 acres, que é, ainda hoje, a área total da Penitenciária Estadual da Louisiana, apelidada de Prisão Angola. Trata-se do único presídio de segurança máxima do estado e do maior em todo o país.

Para além de todas as histórias de violência e barbárie que poderíamos narrar, uma se destaca – e justamente por se repetir anualmente. Desde o ano de 1965, a penitenciária entrou para o ramo dos grandes espetáculos, e, de 1967 até os dias que correm, em todos os domingos do mês de outubro, vem realizando um rodeio aberto ao público.  

“O show mais selvagem do sul”[iii] consiste em recrutar presos sem qualquer experiência prévia a tentarem a sorte contra o touro, num rodeio: por um punhado de dólares, homens são expostos ao ridículo, protagonizando um espetáculo bárbaro, cujo desfecho quase inevitável é serem lesionados diante de uma plateia de 10.000 pagantes.

E qual seria o perfil dos presidiários? Bem, da população de mais de 6.000 presos, dois terços dos quais cumprindo pena de prisão perpétua[iv], a maioria são homens negros com menos de 40 anos de idade: 50% foram condenados por homicídio; 20%, por roubo; 16%, por estupro. Os 14% restantes foram condenados por crimes relacionados a lei de drogas, sequestro, e outros crimes contra a propriedade[v].

Veja-se, portanto, que o elenco de “cowboys condenados” é composto por homens que, em sua maioria, já perderam tudo: se um dia deixarem a prisão, não haverá lugar para eles no mercado de trabalho – não passarão, afinal, de peças obsoletas e enferrujadas do tipo que, uma vez encontradas, são logo postas fora, dado que não têm a menor serventia. Das entrevistas concedidas, recolhem-se depoimentos os mais enfáticos[vi]: alguns participam como que para fugir ao marasmo prisional; outros, de maneira mais melancólica, só querem ser notados por nós, que vivemos do lado de fora, ainda que, para isso, sejam objeto de chacota e escárnio; e também há os que querem ter uma chance a mais de rever familiares e amigos. Mas há um objetivo comum a todos eles: o dinheiro, a recompensa monetária pelo sofrimento público.

De fato, 20 ou 40 dólares parecem representar muito pouco para que alguém aceite correr o risco de uma lesão, mas a economia prisional opera num ritmo distinto da nossa: lá, essa quantia garante uma ou duas semanas de benefícios que, sem dúvida, fazem toda a diferença e ajudam a amenizar o martírio diário. Ademais, o diretor do presídio é proativo em incentivá-los a participar: quem topa o desafio pode comer um filé durante a refeição, pode mascar tabaco durante o evento e coisas que tais. Vejam como é barato conquistar os que já perderam tudo; como é fácil convencer quem não tem nada.

Trajando uniformes em desuso – aquela roupa listrada e alvinegra que se vê em filmes de época – e concedido um precário equipamento de proteção, como que de improviso, os participantes entram em cena, disputando uma série de modalidades as mais vexatórias e arriscadas. Citemos apenas duas delas.

No “poker dos condenados[vii], quatro presos sentam-se à mesa disposta no centro da arena para uma partida de poker. Por óbvio, o carteado é só um pretexto tolo, dado que ninguém ali está jogando para valer. As regras são muito simples: uma vez que liberam o touro, o último a permanecer sentado vence.

Em “coragem e glória[viii], atuam todos os presidiários que tenham interesse no grande prêmio da noite. A “brincadeira” é a seguinte: os organizadores amarram uma ficha de poker na testa do bicho e soltam-no na arena; o primeiro a conseguir arrancar-lhe a ficha é o vencedor. Nem é preciso dizer que esta é uma das modalidades mais arriscadas, pois uma coisa é permanecer imóvel e sentado à mesa, outra, bem diferente, é uma multidão de homens provocando ativamente a besta de centenas de arrobas.

A miséria do nosso tempo é que todos os envolvidos parecem reféns de uma lógica utilitária perversa, e acreditam que ninguém sai perdendo: o presídio promove um evento extremamente lucrativo, a multidão pode se refestelar com um espetáculo que remete aos gladiadores romanos, os presos – que participam por “livre e espontânea vontade” – têm a chance de obter alguns dólares, e o touro – até o touro! – tem a chance de vingar sua espécie, dado que seus adversários dificilmente conseguirão opor-lhe resistência relevante.

Os Estados Unidos são uma festa! E como é bom que, ao menos neste particular, não façamos parte dela…

Notas de rodapé

[i] A cronologia e os fatos que passo a narrar constam do sítio oficial da penitenciária. IN: https://www.angolamuseum.org/history-of-angola

[ii] Membro do Partido Democrata, faleceu 38º Governador da Louisiana (1924-1926).

[iii] “The Wildest Show in the South” é o slogan oficial do evento. Confira-se o sítio oficial: http://angolarodeo.com/

[iv] “Um em cada dez prisioneiros nos Estados Unidos cumpre pena de prisão perpétua.” IN: FERGUSON, Robert A. Inferno: an anatomy of american punishment. Cambridge: Harvard University Press, 2014, p. 169.

[v] Feitas algumas atualizações, há um excelente panorama IN: SCHRIFT, Melissa. The Angola prison rodeo: inmate cowboys and institutional tourism. Ethnology, vol. 43, n. 4, pp. 331-344, 2004.

[vi] Idem.

[vii] https://www.youtube.com/watch?v=EWD0Lmsx42E&ab_channel=KeeganEdwards

[viii] https://www.youtube.com/watch?v=sUbvkVIrNF8&ab_channel=Canuk%26Cars

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