E não é que eram golpistas mesmo?

O bolsonarismo dizendo ao que veio...

Com a divulgação do resultado do segundo turno das eleições presidenciais, um silêncio sepulcral tomou conta do Palácio da Alvorada: nos últimos quatro anos, talvez tenha sido a primeira ocasião em que bolsonaro passou mais de 48 horas sem dar alguma declaração vergonhosa; restou-lhe, afinal, a vergonha do silêncio. E quanto ao discurso que pôs fim ao remanso? Muito provavelmente um dos mais medíocres que um presidente tenha dado em nossa história. Vivenciando o primeiro estágio do luto, aquele que estava convicto de que seu poder seria mais eterno que os diamantes não foi sequer capaz de reconhecer a derrota, mas o mais lamentável foi ter conferido legitimidade às manifestações golpistas que, desde a proclamação da vitória de Lula, se alastraram por todo o país. E não é que os bolsonaristas eram golpistas mesmo? Ora, ora… quem poderia imaginar?

No artigo que publiquei na semana passada[i], fiz uma analogia entre a fascistização das relações de sociabilidade contemporâneas e o livro Laranja Mecânica (1971), de Anthony Burgess (1917-1993), onde, para que a violência impere, basta que os detentores do poder e dever de impedi-la cruzem os braços. Os últimos dias parecem ter deixado claro que a analogia não é despropositada, pois a distopia se concretizou.

Repetiu-se a tática ensaiada em 2018, durante a greve dos caminhoneiros, que foi, aliás, liderada pelo próprio bolsonaro. Estradas foram sistematicamente bloqueadas por bolsonaristas, emburrados com a voz das urnas, pregando abertamente intervenção federal, o rótulo apedeuta para golpe de estado. Naquilo que concerne à tática, a questão já tinha sido juridicamente resolvida pela ADPF 519, de 1º de junho de 2018: o direito de reunião não pode impedir que o restante da população exerça seus direitos fundamentais (ir e vir, saúde, segurança, acesso a bens e serviços etc.). Isto se a manifestação tivesse alguma fumaça de legitimidade, o que não é o caso. O objetivo é claro: impedir que Lula assuma a cadeira presidencial.

Não deu certo, por óbvio. Nas capitais, muito barulho por nada: gente completamente histérica, que acreditou e celebrou, aos berros, todas as bizarrices que se possa imaginar, desde a “descoberta da fraude do processo eleitoral” até a “decretação da prisão do Ministro Alexandre de Moraes”. Em Brasília, bolsonaro passou a conviver com a solidão dos derrotados, verificando que muitos de seus aliados eram, como sempre ocorre, homens e mulheres que navegam conforme a maré, e os ventos passaram a soprar em outra direção. A esse respeito, Steven Levitsky (1968-), o renomado autor de Como as democracias morrem (2018), destacou uma importante diferença entre trumpismo e o bolsonarismo: no day after, os aliados de bolsonaro reconheceram prontamente a derrota[ii].

Mas há que atentar para os bolsonaristas impenitentes. Gente do naipe de uma Carla Zambelli, de um Otávio Fakhoury e de um Zé Trovão não respeita limites: persevera em sua defesa do minúsculo líder, além de incorrer, direta ou indiretamente, em práticas golpistas, apoiando os atos ou participando ativamente deles. Falando nisso, em se tratando de celebridades, os méritos profissionais claramente não são conducentes à virtude moral: Nelson Piquet deu declarações que, por si só, já nos autorizariam chamá-lo de “corredor da morte”; Cássia Kis transita, melancólica, entre os manifestantes, e, entre uma reza e outra, destila homofobia; Wanderley Silva, a lenda do MMA que não conseguiu emplacar na carreira política, vem mostrando que seu apelido, “cachorro louco”, é perfeitamente aplicável – algum poeta poderia dizê-lo – fora das quatro linhas do tatame.

E as polícias, então? Muitos de seus quadros seguem oscilando entre a apologia e a condescendência, entre o golpismo e a prevaricação. É curioso que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) tenha tido de ser provocado para, por via de liminar, enunciar o óbvio: que os policiais cumpram com o seu dever, pois todos esses atos são manifestamente ilegais. O caso mais asqueroso foi o de Santa Catarina, em que centenas de bolsonaristas foram filmados fazendo a saudação nazista, enquanto o hino nacional era entoado.

Criticadas pela sua sistemática omissão diante dos fatos, algumas autoridades tentaram tergiversar, alegando que o caso é complexo, de difícil solução; são muitas pessoas, em muitos lugares do país. Todavia, é estupefaciente que torcidas organizadas, a exemplo da Galoucura e da Gaviões da Fiel, tenham se mostrado mais eficazes, competentes e organizadas do que a própria polícia em desbloquear as estradas brasileiras. Nas cidades, o clima entre policiais e golpistas é de congraçamento: um tal de “com licença”, “por gentileza” e “obrigado” que são de estarrecer qualquer um que tenha a mais mínima informação sobre os protocolos empregados pelas polícias nas favelas e demais regiões periféricas do Brasil. Novamente: as policias oscilam entre a apologia golpista e a prevaricação.

Até o momento, a Confederação Nacional do Comércio (CNC) estima que o prejuízo diário atingiu a impressionante marca de 2 bilhões de reais[iii], e não por acaso bolsonaro se viu obrigado a pedir que os manifestantes desbloqueassem as estradas. Mas a pergunta mais importante a ser feita é: quem bancou o movimento golpista até então? Há que investigar, e com a urgência que a gravidade dos fatos recomenda. Aliás, por onde andará o Ministério Público?

Notas de rodapé

[i] https://www.introcrim.com.br/post/que-horas-sao-afinal

[ii] “Os Estados Unidos foram realmente muito piores. Trump declarou desde o dia da eleição que o pleito tinha sido fraudado. E não houve um Arthur Lira nos Estados Unidos, todos os principais republicanos ecoaram as alegações de Trump sobre fraudes ou simplesmente permaneceram em silêncio. Eles se recusaram a parabenizar publicamente Biden, a reconhecer publicamente que a eleição havia sido justa e que Trump tinha perdido. E com isso eles permitiram que, ao longo de dois meses, Trump tentasse roubar a eleição. Então, a resposta brasileira, o fato de parte significativa dos aliados políticos de Bolsonaro já terem se manifestado e aceitado publicamente os resultados das eleições é uma grande diferença com o que ocorreu nos Estados Unidos. A resposta do Brasil é muito mais saudável.” Para a íntegra da entrevista, cf.: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63453815

[iii] https://g1.globo.com/jornal-da-globo/noticia/2022/11/04/bloqueios-ilegais-em-estradas-provocam-perdas-diarias-de-quase-r-2-bilhoes-no-comercio-diz-cnc.ghtml

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