Quem tem medo de Lima Barreto?

No centenário de morte do autor, reflitamos sobre a importância de sua obra - ainda não tão valorizada como deveria.

Em 01 de novembro de 1922, o escritor Lima Barreto faleceu. Aos 41 anos, com a saúde debilitada, morre em casa, no bairro de Todos os Santos, no dia de Todos os Santos.

Lima, quando vivo, era muito conhecido. O Senado, inclusive, faz uma homenagem ao escritor quando do seu falecimento. Apesar de ser conhecido, Lima não teve o reconhecimento literário que outros grandes escritores brasileiros – qual seria o motivo?

Nascido livre

Filho da professora Amália e do tipógrafo João, neto de escravizados, Afonso Henriques de Lima Barreto[1] nasceu em um 13 de maio, exatos sete anos antes da assinatura da Lei Áurea[2]. Ainda, criança, Lima tem a sua primeira perda: sua mãe falece no dia de Natal, em 1887, de tuberculose, então conhecida como “praga dos pobres”[3].

Infância na Colônia de Alienados

Em 1888, são inauguradas as Colônias de Alienados, que tinham como objetivo inicial “recuperar mendigos e indivíduos ociosos”[4]. E é para lá que em 1890, já na República, que o pai de Lima – agora viúvo e com quatro filhos – vai com a família. Tipógrafo desempregado, Henriques aceita o emprego de escriturário e, logo depois, de almoxarife do lugar que serviu de inspiração ao escritor para “Triste fim de Policarpo Quaresma”. Lima, ainda criança, convive com os internos e vive neste lugar, que tinha como um dos problemas a falta de água. Tempos depois, chega a dizer que se sentia mais confortável neste lugar do que em ambientes como a Politécnica.

Passagem pela Politécnica e racismo

Quando entra para a Politécnica, no ato de inscrição, Lima sofre racismo: “vejam só! Um mulato ter a audácia de ter o nome do Rei de Portugal”. O escritor não conclui seus estudos na Escola que, segundo ele, tinha “atmosfera de escola superior”.

Ainda jovem, Lima já tinha consciência de que era um homem negro em um Brasil que tinha acabado de interromper séculos de escravidão.

Em um episódio, quando seus amigos queriam assistir de penetras a uma ópera, ele desistiu: “Não quero ser preso como ladrão de galinhas. Sim, preto que salta muros só pode ser ladrão de galinhas (…) Ah, vocês, brancos eram rapazes da Politécnica, mas eu? Pobre de mim. Um pretinho. Era seguro logo pela polícia, o único a ser preso”.

Personagens negras

Em seus romances e contos, vemos a constante presença de personagens negros – protagonistas e secundários.

A crítica à época não estava preparada para a sua obra, muito autobiográfica e que o próprio Lima chamava de militante. O escritor denunciava a desigualdade social, o racismo, a política.

É preciso lembrar que quem fazia a crítica literária eram os homens brancos e, portanto, a escrita de Lima incomodava – e até hoje coloca o dedo na ferida.

Clara dos Anjos e as teorias raciais

Um dos romances de Lima, Clara dos Anjos, sobre o qual o escritor se debruçou incansavelmente e sofreu diversas modificações ao longo da vida, foi publicado postumamente, em folhetim, em 1924.

Segundo a biógrafa Lilia Schwarcz, “este foi o texto de Lima mais voltado para as especificidades do subúrbio e o mais preocupado em delimitar as divisões espaciais e simbólicas que por lá se estabeleciam – com fronteiras criadas internamente a partir da cor”[5].

Neste período, as teorias raciais, o racismo científico já havia chegado em terras brasileiras e em 1929 o Rio de Janeiro é sede do I Congresso Brasileiro de Eugenia.

É impossível não associar estes acontecimentos ao apagamento de Lima Barreto e sua obra, já que o referido romance, que traz uma protagonista negra, somente será publicado em livro no final da década de 40, mais precisamente em 1948.

Sérgio Buarque de Holanda: comparações com Machado

Lima viveu assombrado com as comparações feitas entre ele e o primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras[6], Machado de Assis, a quem atacava por, segundo ele, não se posicionar[7]. Destaco aqui a cruel – e injusta – crítica feita por Sergio Buarque de Holanda, que pensava a obra de Lima como uma “confissão mal-escondida de ressentimentos, de malogros pessoais e que, nos seus melhores momentos, soube transfigurar em arte”[8].

Romance à clef e críticas ácidas

“Recordações do escrivão Isaías Caminha”, publicado em 1909, recebeu inúmeras críticas por ser considerado um romance à clef[9]. Curiosamente, o livro de Raul Pompeia, “O ateneu” – também considerado um romance à clef – foi aclamado pela crítica, mas não foi a ele colocada a característica negativa de “carente de imaginação”, tal fizeram com Lima.

Isso demonstra que a questão não era ser o romance à clef. O que incomodava era a escrita de um escritor negro: isso não poderia ser permitido, já que o Cânone Literário era formado por homens brancos.

Analisando alguns romances de Lima, percebemos a constante inquietação sobre temas que o cercava: desigualdade social, política e racismo, dentre outros. Lima se posicionava de forma explícita, com críticas ácidas.

Em “Numa e a ninfa”, romance pouco conhecido de Lima, há uma brilhante crítica à política e à mania do brasileiro se fazer passar por doutor: “No Brasil, é um título que dá todos os direitos, toda a consideração”.[10]

Em “Triste fim de Policarpo Quaresma”, publicada inicialmente em folhetim e lançada em livro em 1915, pouco tempo depois da República da Espada, há uma aberta crítica aos militares.

Diários de Lima

Em seu “Diário Íntimo”, Lima Barreto se apresenta por inteiro. É lá, por exemplo, que temos contato com diversas de suas reflexões sobre racismo, tais como: “A capacidade dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori”.

No entanto, como bem destaca Beatriz Resende, até pouco tempo, o registro nos diários não era reconhecido como gênero literário. Digo inclusive que é visto como algo “menor”. Prova disso é a escrita tão importante de Carolina Maria de Jesus que, somente há pouco vem ganhando o espaço que deve.

Alcoolismo

Lima por vezes pagou para ter seus livros publicados e era muito ressentido com a crítica literária. Tinha um vício: o alcoolismo, que o acompanhou por duas décadas.

Lima passou por mais de uma internação no Hospital Nacional de Alienados. Inclusive, em uma das internações, ele foi recolhido quando encontrado na noite de Natal perambulando pelas ruas, desorientado.

Há registros destas passagens – documentos e fotos – e podemos verificar em seu uniforme o nome da seção, “Pandemônio” que, segundo sua biógrafa Lilia Schwarcz, deve tê-lo motivado a escrever “O cemitério dos vivos”.

Lima do povo!

Em “Morte e vida de MJ Gonzaga de Sá”, destaco o seguinte trecho: “para se compreender bem um homem, não procure saber como oficialmente viveu. É saber como ele morreu, como ele teve o doce prazer de abraçar a morte e como ela o abraçou”.

O caixão de Lima foi carregado por pessoas do subúrbio – e ele não só na escrita, mas em sua vida, amava o subúrbio e criticava a zona sul -, e tomou um trem rumo à Central do Brasil – assim como ele o fazia em vida: usava o trem e também percorria a cidade do Rio de Janeiro a pé.

Viva Lima Barreto! Lima observador, questionador, crítico… Lima do povo.

Notas de rodapé

[1] Seu primeiro nome – assim como Machado de Assis – foi em homenagem ao padrinho.

[2] No artigo “Maio”, escreve: “Eu tinha sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não lhe imaginava o horror; não conhecia a injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava”.

[3] Na época, a tuberculose era considerada um mal hereditário da degeneração, próprio dos chamados mestiços e, por isso, havia um estigma.

[4] Nesta época, surge uma nova proposta no tocante à saúde mental: experimentos vindos da Europa sugerem a separação dos os chamados “doentes mentais” dos “sãos” e “pedintes e malfeitores”. Em “O Alienista”, de Machado de Assis, podemos ver a questão da loucura assim tratada pela personagem Simão Bacamarte.

[5] SCHWARCZ, Lilia. Lima Barreto: Triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 412. [6] Lima inclusive tentou, por mais de uma vez, entrar na Academia, mas não logrou êxito. [7] Sobre o posicionamento de Machado de Assis quanto à escravidão, acabei de lançar meu primeiro livro, “Machado de Assis abolicionista”. [8] Sergio Buarque segue na crítica: “A verdade é que Lima Barreto não foi o gênio de que suspeitam alguns dos seus admiradores e nem é possível, sem injustiça, equipará-lo ao autor de Brás Cubas. Ele não conseguiu forças para vencer, ou sutilezas para esconder, à maneira de Machado, o estigma que o humilhava”. https://revistacontinente.com.br/edicoes/135/-clara-dos-anjos—a-pele-que-o-autor-habita Acesso em 01 nov. 2022.

[9] Romance “com chave”, influenciado por experiência pessoal.

[10] Crítica igualmente presente no conto “O homem que sabia javanês”.

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