E se Roberto Jefferson fosse negro?

Depois de receber a polícia federal com tiros de fuzil e um arremesso de granada, seu tratamento diferenciado nos leva à algumas reflexões.

No último domingo, dia 23 de outubro, o ex-deputado federal Roberto Jefferson – que cumpria prisão domiciliar – recebeu a polícia (que se dirigiu ao local para cumprir mandado judicial do ministro do STF Alexandre de Moraes) com arremesso de granadas e cerca de cinquenta tiros de fuzil.

De imediato, pensei: e se Roberto Jefferson fosse um homem negro?

“I can’t breathe”

É impossível não se lembrar de George Floyd e suas últimas palavras, “I can’t breathe”, enquanto era cruelmente asfixiado por um policial em Minneapolis, Estados Unidos[1]. Floyd em momento algum apresentou resistência e, ainda assim, foi friamente assassinado.

Parado por policiais por estar sem capacete, Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, foi assassinado por policiais, que fizeram da viatura uma verdadeira câmara de gás.

Não é coincidência que, no Brasil, cerca de 75% das vítimas de violência letal no país são negras e que a probabilidade de um jovem negro ser morto é 2.5 vezes maior do que um jovem branco[2]. A polícia tem seu alvo: a pele preta, exterminada pela necropolítica.

Queen & Slim

Assisti nesta semana ao filme “Queen & Slim”, estrelado por Daniel Kaluuya (“Corra” e “Judas e o Messias Negro”) e Jodie Turner-Smith (“Ana Bolena”).

O casal, que se conhece por um aplicativo, acaba de ter seu primeiro encontro e é parado por um policial. A diferença de tratamento dado ao policial a um homem negro x homem branco ao volante é gritante. Já escrevi sobre isso quando refleti sobre o caso Jeff Dahmer, ao qual remeto você à leitura.

Diante de um perceptível abuso de autoridade, aquela abordagem tem o seguinte desfecho: o policial acaba morrendo e o casal decide fugir, pois sabia – e nós também – o que aconteceria caso permanecessem no local.

Já em fuga, percebem que muitas pessoas compreendem o que de fato ocorreu e se solidarizam. Quando chegam à casa de Earl, ele diz: “a polícia é como caçadores de escravizados”.

O filme não tem um desfecho feliz – e por isso mesmo reflete a realidade. Os policiais atiram para matar, mesmo vendo que o casal não tem armas e não oferece qualquer perigo à integridade física dos agentes e de terceiros.

Um eterno looping

Parece que, não importa o que fizessem (se tivessem ficado no local, se tivessem fugido, se tivessem ido à delegacia se entregar), Queen e Slim já tinham seu destino traçado: seriam mortos pela polícia.

No curta “Dois estranhos”, vencedor do Oscar de 2021, vemos o jovem negro Carter (vivido por Joey Badass) viver um angustiante eterno looping: saindo da casa de uma mulher com quem passou a noite, tem seu caminho cruzado por um policial branco e, não importa o que faça – muda a trajetória, espera mais um pouco na casa da mulher, fala de um jeito diferente com o policial- ele morrerá.

O filme e o curta nos fazem refletir (principalmente se somos pessoas brancas) sobre o seguinte: quando um homem negro sai de casa pela manhã e retorna ao final do dia em segurança, ele já está vencendo as estatísticas. Isso porque, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado no Brasil.

A pele alva e a pele alvo

Roberto Jefferson atira 50 vezes em policiais com um fuzil e atira granadas. E sai sem um arranhão, após cerco de oito horas em sua casa e negociação com policiais – um deles inclusive rindo e conversando calmamente com Jefferson.

É preciso também destacar o local de cumprimento da diligência. A polícia só foi até a casa de Jefferson porque tinha um mandado judicial a ser cumprido, expedido de forma totalmente legal.

E se Jefferson morasse em uma favela? A polícia respeitaria a inviolabilidade do domicílio e as regras constitucionais ou já entraria arrombando a porta?

Deixo registrado que todas as pessoas devem ter seus direitos constitucionais respeitados. Justamente por defender que todas as pessoas devem ter o mesmo tratamento constitucionalmente garantido, há que se questionar o fato de que a bala policial sempre encontra corpos negros e de que há sim, dois pesos, duas medidas, em se tratando de abordagem policial a pessoas negras e brancas.

Como bem diz Emicida, “existe a pele alva e a pele alvo”[3].

Notas de rodapé

[1] Em 25 de maio de 2020, o policial branco Derek Chauvin se ajoelhou no pescoço de Floyd durante uma abordagem policial e, mesmo com o alerta de Floyd de que não estava conseguindo respirar e com os registros em câmera, Chauvin não parou até que Floyd não mais resistisse. Floyd afirmou mais de vinte vezes que não conseguia respirar, durante os quase dez minutos que o policial permaneceu ajoelhado em seu pescoço. Floyd tinha 46 anos.

[2] https://sismmac.org.br/a-cada-23-minutos-morre-um-jovem-negro-no-brasil/ Acesso em 26 out. 2022.

[3] Não deixe de ouvir a música “Ismália”, que integra o majestoso álbum “AmarElo”.

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