Um pouco mais sobre aparâncias enganosas

“Criminoso é quem pratica crime(s)”. Aparentemente irretocável do ponto de vista lógico, o raciocínio popularesco não resistiria a algumas pitadas de abstração teórica. Afinal, em contraposição a essa crença, de há muito já se sabe que um dos maiores inconvenientes do direito penal e processual penal, da criminologia e da política criminal, é o seguinte: nem todos os que cometem crimes são criminalizados; nem todos os que foram (são e serão) criminalizados cometeram crimes. Ademais, pela sua própria definição jurídica vulgar, o criminoso faz necessária referência ao crime, porquanto sujeito ativo do delito, categoria esta que também já viveu dias melhores.

Ocorre que o crime varia no tempo e no espaço, seja pela sua conceituação formal, seja pelo elenco de condutas que são selecionadas como crimes. É um processo contraditório, recheado de determinações históricas, políticas, sociais, econômicas e culturais, porém uma coisa é certa: naquilo que respeita ao conceito de crime, observa-se um desenvolvimento teórico que só contribuiu para desnudar a sua inegável inépcia analítica, uma vez que, em ritmo crescente, pretende abarcar condutas que não possuem a mais diminuta semelhança material umas com as outras[1] – salvo, é claro, pelo fato de que todas foram rotuladas como crimes. Isto posto, poder-se-ia dizer que, no jardim das tautologias, o conceito de crime é o fruto mais deteriorado.

Tendo em vista o gigantesco complexo de tipos[2] existentes na nossa legislação penal, não seria desarrazoado afirmar que é bem provável que todos nós já tenhamos praticado um ou outro fato passível de criminalização. Entretanto, deixemos esse autoexame de lado: façamos eco com a cultura punitiva, segundo a qual o criminoso é sempre o outro. Neste caso, tomando por base a massa da população[3], só se poderia pensar em duas hipóteses de contato com a criminalidade: a primeira, na condição de vítima; a segunda na condição de espectador direto (p. ex., testemunha) ou indireto (p. ex., via meios de comunicação). Na primeira hipótese, para além da solidariedade e assistência devidas à vítima, o que se tem é um contato marcado pela imediatidade, no terreno do empírico-sensível. Quanto à segunda hipótese, também o espectador direto está restrito à imediatidade fenomênica, mas o mesmo não se pode dizer sobre o espectador indireto, que é mediado por um discurso acerca de um fato – e com todos os vieses que um discurso possa comportar.

A imediatidade faz parte das nossas relações de sociabilidade; é o modo pelo qual, via de regra, confrontamos a realidade nas nossas vidas cotidianas. Trata-se, portanto, de um confronto que, justamente por ser imediato, é estritamente empírico, tendente ao subjetivismo. Isto nos deveria remeter à lembrança de que as aparências, malgrado intensas e sedutoras, são enganosas. Bem entendido, não se está afirmando, aqui, que “a vítima entendeu errado”, que não foi alvo de uma forma de violência física ou simbólica, mas apenas que a sua percepção subjetiva não se traduz em conhecimento científico acerca do tema. Dito de outra maneira: cuidar de um cão não nos faz veterinários ou biólogos; educar um filho não nos torna pedagogos ou professores; ouvir música não nos torna maestros ou compositores; ter tido traumas pessoais não nos torna psicólogos ou psiquiatras.

No terreno da imediatidade, achamo-nos invariavelmente contemplativos, apassivados e regidos pela sensibilidade, similarmente àquele materialismo com que Feuerbach (1804-1872) fitava o seu entorno[4]:

“(…) Ele não vê como o mundo sensível que o rodeia não é uma coisa dada imediatamente por toda a eternidade e sempre igual a si mesma, mas o produto da indústria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram sua indústria e seu comércio e modificaram sua ordem social de acordo com as necessidades alteradas.”

Karl Marx e Friedrich Engels

Em sede de pesquisa científica, se o primeiro contato com o objeto é imediato (ou mediado por narrativa tal ou qual), o primeiro passo do pesquisador é romper com a imediatidade do fenômeno; é abstrair-se da sua percepção empírico-sensível; é elevar-se (metaforicamente) sobre a coisa observada. Do contrário, o resultado será uma mera descrição daquilo que se observa – descrição esta que, por mais rica que o seja, não se confunde com uma teorização, que é forçosamente explicativa.  

Este é, com toda a certeza, o maior vício do positivismo criminológico. Lombroso (1835-1909), seus colegas e entusiastas – e não apenas eles, pois há carradas de positivismo nas várias escolas que compõem as criminologias tradicionais – empenharam anos na pesquisa para desvendar as causas do crime. Visitaram presídios de todos os tipos, em uma busca obsessiva, metodologicamente orientada por medições e aferições as mais minuciosas. Sem que pudessem perceber, só o que conseguiram com isso foi produzir, em um tempo e espaço específicos, um relatório detalhadíssimo acerca do perfil dos criminalizados.

Por quê? Porque o positivismo confunde o trabalho de teorização com uma suma de dados empíricos. O problema é que há objetos que são inobserváveis, exigindo o emprego de indicadores objetivos para perscrutá-los. Para ilustrar a problemática, pensemos na pobreza. No mínimo, qualquer pessoa em sã consciência sabe que a pobreza existe e assola um agigantado contingente populacional. Mas o que é a pobreza? Para observá-la, é preciso selecionar uma série de indicadores objetivos, como, por exemplo: níveis de desnutrição, inserção no mercado de trabalho, níveis de renda, níveis de escolaridade. Os indicadores estabelecem a ponte entre o esforço de teorização e os dados empíricos coletados.

No estudo da chamada criminalidade, surge um outro problema: pela sua natureza clandestina, mostrou-se extremamente difícil quantificá-la ou estabelecer indicadores que possam contribuir para elucidar o que, em princípio, é inobservável. Este é, de resto, o impasse histórico das estatísticas criminais! Contudo, nem toda a criminologia tem a “criminalidade” como objeto central de análise: a criminologia crítica prefere voltar as suas lentes para os processos de criminalização, posto que rompeu com a ignorância imediata dos “especialistas” de outrora…

Notas de rodapé

[1] O conceito de mamífero é cientificamente adequado, pois, apesar das diferenças existentes entre os animais que compõem a subclasse, todos partilham de algumas características materiais. O mesmo não se pode dizer do conceito de crime, que abrange condutas tão díspares quanto furto, homicídio e divulgação de segredo.

[2] MACHADO, Maíra Rocha; MACHADO, Marta Rodriguez de Assis (coord.). SISPENAS: Sistema de consulta sobre crimes, penas e alternativas à prisão. Brasília: Rev. Jur., v. 10, n. 90, 2008. In: https://revistajuridica.presidencia.gov.br/index.php/saj/article/view/235/224

[3] Leia-se: aqueles que não trabalham no sistema penal.

[4] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). Trad.: Rubens Enderle Nélio Schneider Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2012, p.  30.

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