Escravagistas do século XXI e o simulador da escravidão

A desumanização dos corpos negros através da naturalização de um sistema opressor

Nesta quarta-feira, dia 24 de maio, recebi uma mensagem de que havia um jogo disponível para compra chamado simulador da escravidão. A máxima “ver para crer” se aplica por aqui, já que em meio a tantas fake news, sou cuidadosa e sempre confiro os fatos. Neste caso, gostaria que não fosse verdade, mas, ao abrir o aplicativo do Google Play, vi o game cuja proposta era chocante: o jogador (pasmem!) é um proprietário de pessoas escravizadas, que pode torturá-los, a partir de sofrimentos físicos e redução da quantidade de comida, por exemplo, deve enriquecer e ainda, evitar rebeliões e fugas. A Magnus Game, responsável pela produção do jogo, alegou que ele tinha “fins de entretenimento”.  

Não há um jogo simulador de campos de concentração, por razões óbvias: o holocausto perseguiu e exterminou milhões de seres humanos. Para os campos de concentração (o primeiro foi Dachau, construído em 1933) eram levados opositores ao regime e pessoas consideradas inferiores, que não se encaixavam no conceito de raça pura. Lá, elas recebiam em seus uniformes triângulos com cores diferentes, para facilitar a identificação, a depender do grupo em que se encaixavam, tais como, pessoas em situação de rua (triângulo preto), comunistas (triângulo vermelho), judeus (triângulo amarelo) e homossexuais (triângulo rosa). Auschwitz era um dos campos de concentração em que sistematicamente aquelas não-pessoas eram marcadas com números na pele. Seus sobreviventes relataram o horror que presenciaram: trabalhos exaustivos, doenças, desnutrição, tortura, câmara de gás… É indiscutível, é público e notório: o holocausto foi um crime contra a humanidade.

Assim como o holocausto, a escravidão também foi um crime contra a humanidade. Houve um verdadeiro genocídio da população indígena e negra, cujas consequências presenciamos até hoje. Por que então muitas vezes romances literários, novelas e filmes a romantizam? Por que não é tratada da mesma forma que tratamos o holocausto? Como bem reflete Abdias Nascimento, o sequestro de africanos de África, a estrutura e estratégia de dominação racial que perdurou séculos, cujo sistema foi implementado em diversos países, foi um verdadeiro holocausto contra o africano[1]. Todo crime contra a humanidade, toda forma de extermínio de pessoas deve ser tratada com seriedade e respeito. Dor, tortura, extermínio não podem jamais ser sinônimo de entretenimento. Um jogo criado para reproduzir um sistema que ceifou milhões de pessoas é inaceitável. Naturaliza-se a crueldade, a opressão e corpos negros continuam a ser desumanizados.

O homem escravizado, quando saudável, era vendido pelo valor equivalente ao de quinze chapéus de feltro[2]. O valor de um ser humano era esse: quinze chapéus, meros objetos para adorno/proteção ao sol! Aliás, antes de serem levados à força aos tumbeiros, eram marcados com ferro em brasa. Em seguida, tinham em seu peito o selo da Coroa portuguesa gravado, indicando que os impostos referentes àquela mercadoria humana foram devidamente recolhidos. Poderiam também ter o nome do traficante que despachou a carga marcado e ainda o nome do novo dono. Caso, posteriormente, fugissem, ao serem capturados poderiam ser marcados a ferro com a letra F no rosto[3]. Não à toa eram chamados de peças (adultos) e pecinhas (crianças)[4].

Os escravizados eram considerados coisas, bens que poderiam ser objeto de contratos de compra e venda e que seriam inventariados quando da morte de seu dono. A economia girava em torno deste sistema, que inclusive movimentava um negócio paralelo: a reprodução de cativos, com o objetivo de venda das crianças, comercializadas da maneira mais natural, como quem comercializava cabeças de gado[5]. Até hoje, pessoas negras são objetificadas e hipersexualizadas. Inúmeros são os casos de racismo recreativo (que infames “comediantes” continuam a dizer que é “apenas uma piada”. No referido game, os escravizados têm classificações, dentre elas a escravos de prazer e trabalhadores. Ao ler isso, pensei: que tipo de pessoa jogaria um troço desses?

No entanto, não fico surpresa ao verificar comentários deste nível sobre o “inofensivo joguinho” (cuja classificação etária era livre). Cito dois comentários: “ótimo jogo para passar o tempo, mas acho que faltava mais opções de tortura. Poderiam instalar a opção de açoitar o escravo também” e “muito bom mesmo, retrata bem o que eu gostaria de fazer na vida real”.

O jogo foi retirado do ar, quando, na verdade, não deveria sequer ter sido disponibilizado no aplicativo. Que tipo de pessoa cria algo assim? Quem o comercializa e quem o compra? Infelizmente, podemos constatar que há mercado para isso: há um mercado que gira em torno do racismo recreativo, como podemos ver com alguns comediantes que lotam seus shows com “piadas” capacitistas, racistas e misóginas. Não se iludam: há, em pleno século XXI, escravagistas e precisamos sempre ficar atentos para que não deixemos que os horrores da escravidão sejam apagados ou romantizados. Como disse Emilia Viotti da Costa, “um povo sem memória é um povo sem história e um povo sem história está fadado a cometer, no presente e no futuro, os mesmos erros do passado”.

Notas de rodapé

[1] NASCIMENTO, Abdias do. O negro revoltado. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 25.

[2] Ibidem, p. 225.

[3] Ibidem, p. 281.

[4] MATTOSO. Katia de Queiroz. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense. 2 ed. 1988. p. 47.

[5] GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: Globo livros. v.1, 2019. p. 224.

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