Depende do que se entende por “determinismo”.

Em face da pergunta-título, não seriam poucos os que, por perfilharem a tradição marxista, espumariam de raiva, e logo sairiam em defesa de seu mestre, na certeza de um milionésimo caso difamatório, protagonizado ou por um embusteiro qualquer ou por um criptopositivista infiltrado. Decerto, uma tal reação não seria, de todo, imotivada, tendo em vista a sucessão de trapalhadas e tapeações de que foi historicamente alvo o opus marxiano, merecendo destaque o grosseiríssimo malabarismo retórico que tentou (e ainda tenta!) verter a crítica da economia política em baluarte do economicismo. Quanto a isto, sinceramente não há muito o que considerar, dado que o economicismo não é outra coisa senão o expediente que tenta reduzir todas as esferas da existência a uma explicação econômica[1] – coisa que Marx jamais fez!

Quanto ao determinismo, a avaliação requer maiores cuidados de rigor. Principiemos por uma definição preliminar[2]:

“Numa acepção geral, o determinismo sustenta que tudo que houve, há e haverá, e tudo o que aconteceu, acontece e acontecerá, está de antemão fixado, condicionado e estabelecido, não podendo haver nem acontecer senão o que está de antemão fixado, condicionado e estabelecido.”

Nesta acepção forte do termo, conducente a sistemas fechados e de talhe laplaciano, segundo a qual todos os eventos vindouros estariam, a limine, condicionados e predestinados a ocorrer, não há ecos marxianos. Ou seja: se a proposição determinista se resumisse a isso, não seria lícito vinculá-la a Marx. Entretanto, como se sabe, a história dos conceitos costuma revelar diversos casos de polissemia: há determinismos e determinismos. Assim sendo, é de bom alvitre recorrer a algumas linhas marxianas[3]:

“Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles que escolhem as circunstâncias sobre as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram.”

Karl Marx

O parágrafo é dos mais elucidativos, fazendo ver que os homens são, a um só tempo, autores e atores de sua própria história. E, como não poderia deixar de ser, o fazer histórico não contempla apenas hipóteses revolucionárias, mas também hipóteses ideológicas, de manutenção e conservação da ordem posta. Tanto é assim que, desenvolvendo sua teoria do valor, Marx afirma[4]:

“Portanto, os homens não relacionam entre si seus produtos do trabalho como valores por considerarem essas coisas meros invólucros materiais de trabalho humano de mesmo tipo. Ao contrário. Porque equiparam entre si seus produtos de diferentes tipos na troca, como valores, eles equiparam entre si seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Eles não sabem disso, mas o fazem.”

Karl Marx

De uma maneira ou de outra, ambas as elaborações reverberam um conhecido postulado viquiano: homo non intelligendo fit omnia[5] (“o homem, sem tencioná-lo, fez tudo”). Ao menos naquilo que concerne ao projeto revolucionário, resta claro que a máxima de Vico (1668-1744) foi criticamente incorporada por Marx, que soube imprimir-lhe um novo formato, conferido pela noção de consciência de classe. Afinal, onde há um projeto, seja ele qual for, há também, necessariamente, a intencionalidade[6] dos agentes nele envolvidos.  

De contato com o objeto de sua investigação – a sociedade burguesa, que se estabelece historicamente pela predominância e universalização do modo de produção capitalista –, Marx buscou apreender suas determinações, pensadas como tendências constitutivas do objeto analisado – de um objeto que constitui, ele mesmo, uma totalidade concreta, contraditória e mediada. Ora, se a concretude mesma dessa totalidade só pode ser entendida, no léxico marxiano, como a síntese de múltiplas determinações[7], havemos de condescender com o juízo de um ilustre economista, para quem as leis gerais marxianas são, todas elas, tendenciais. Contudo, tal juízo não parece ser suficiente para afirmar-se que qualquer atribuição de determinismo a Marx seria produto de incompreensão ou desconhecimento[8] de sua obra.

Mais uma vez, o pomo da discórdia parece ser aquilo que se entende por determinismo. Ocorre que, partindo-se de uma concepção mais amena e minimalista, o determinismo, enquanto tese ontológica, exigiria apenas dois componentes[9]: (a) o princípio genético, de acordo com o qual nada pode surgir do nada ou passar ao nada; e (b) o princípio da legalidade, que disciplina que nada acontece de forma incondicional e totalmente irregular. Nessa mesma linha, como bem notou um importantíssimo historiador: “o marxismo é determinista, no sentido de rejeitar o incausado como uma força formativa na história; mas não é fatalista”[10]

Presumo que, ainda assim, alguns marxistas seguirão torcendo o nariz para o determinismo – e por questão de puro preconceito semântico, uma vez que, do ponto de vista teórico, seria necessária uma boa dose de contorcionismo metodológico para negar a adesão marxiana à tese acima exposta. Trata-se, ademais, de uma implicância das mais contraproducentes, porque este determinismo parece ser o único antídoto contra dois adversários ideológicos: o voluntarismo ingênuo e imaturo, que, apesar de seu entusiasmo político, é preguiçoso demais para a teoria, e o fatalismo mecanicista, que, há mais de um século, dorme o sono dos justos, convicto da inevitabilidade do comunismo. Um outro mundo é possível, mas nem ele é uma certeza, nem é obra do acaso: sua emergência dependerá de um conjunto de determinações…

Notas de rodapé

[1] “Em todas as esferas da existência, é possível distinguir os diversos níveis de realidade. Ao identificar um nível de realidade (estrutural) com uma esfera da existência (econômica), o economicista atribui a esta esfera (economia) a força explicativa sobre as demais esferas (sociedade, política, cultura etc.).” IN: NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogério F. da. (orgs.). Nova história em perspectiva. São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 30

[2] MORA, J. Ferrater. Dicionário de filosofia, tomo I. 2ª. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 690.

[3] MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Trad.: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012, p. 25.

[4] (Grifos meus) MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 149.

[5] VICO, Giambattista. La scienza nuova, parte prima. Bari: Gius. Laterza & Figli, 1911, p. 251.

[6] (Grifos meus) “Os comunistas se recusam a dissimular suas opiniões e seus fins. Proclamam abertamente que seus objetivos só podem ser alcançados pela derrubada violenta de toda a ordem social existente.” IN: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto comunista. Trad.: Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 69.

[7] “O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. Na primeira via, a representação plena foi volatilizada em uma determinação abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto por meio do pensamento. Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que sintetiza-se em si, aprofunda-se em si e movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o método de ascender do abstrato ao concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de reproduzi-lo como um concreto mental. IN: MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. Trad.: Mario Duayer e Nelio Schneider. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011, pp. 54-55.

[8] (Grifo meu) “Nesse sentido, a crise cíclica em Marx seria outra forma de descrever o capitalismo em suas leis gerais (sempre de tendência!). (…) Quem pensa o contrário entende Marx como ele nunca foi: determinista e teleológico.” Cf.: CARCANHOLO, Marcelo. Apresentação: sobre o caráter necessário do livro III d’O Capital. IN: MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro III: o processo global da produção capitalista. 1ª. Ed. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017, p. 17.

[9] BUNGE, Mario. Causality and modern science. 3ª. Ed. Mineola: Dover Publications, 2018, pp. 24-26.

[10] COLE, G. D. H. The meaning of marxism. Michigan: The University of Michigan Press, 1964, p. 29.

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