Marx, marxismo e tradição marxista

Um primeiro passo para estudantes interessados

Na docência universitária, especialmente no que respeita ao campo criminológico, observa-se, para gáudio nosso, um progressivo interesse pelas ideias de Karl Marx (1818-1883). A circunstância é das mais oportunas, pois denota uma rejeição implícita à mentalidade reacionária e fascistóide que, tão obscurantista quanto apedeuta, reemergiu do mausoléu da história para importunar os vivos. Felizmente, uma retórica tão repetitiva e arcaica, característica dos que nada leram e tudo reiteram, costuma desvanecer diante das primeiras leituras acadêmicas[1].

Trata-se, evidentemente, de um momento preliminar; de uma chance para pôr-se de pé, contrariando a marcha do rebanho, e caminhar na direção contrária. Mesmo assim, basta ler algumas páginas do opus marxiano para perceber que não se está em face de um autor de fácil apreensão, daqueles exauríveis em um único semestre letivo. Retome-se a sábia advertência prefacial do autor de O Capital (1867) – “todo começo é difícil, e isso vale para toda ciência”[2] –, e o leitor compreenderá que está apenas iniciando uma árdua jornada rumo ao conhecimento; porém, ressalte-se: uma jornada fascinante.  

Por mais que os percalços sejam inevitáveis, não é necessário assumir a postura do andarilho errante, que, de mãos dadas com a arbitrariedade, desloca-se ao sabor dos ventos, orientando-se por pura intuição. Em vista disso, e para auxiliar aqueles que ainda estiverem inseguros sobre seus rumos, este é apenas o primeiro de uma série de artigos dedicados ao método de Marx. O objetivo é muito simples: fornecer um mapeamento e um itinerário; limpar o terreno, para que o leitor inexperiente caminhe a passos mais firmes.

Aprendendo o vocabulário

De partida, uma aparente obviedade: Marx não é sinônimo de marxismo. Em língua portuguesa, como em outras línguas, emprega-se o sufixo “-ismo” para compor novas palavras, aludindo-se a doutrinas ou sistemas filosóficos (e. g., platonismo, marxismo); doutrinas ou sistemas artísticos (e. g. classicismo, simbolismo); doutrinas ou sistemas políticos (e. g., federalismo, monarquismo); religiões (e. g., catolicismo, judaísmo); modos de agir (e. g., cinismo, heroísmo); e deficiências ou doenças (e. g., daltonismo, reumatismo)[3]. Nesse tipo de composição, em que formamos substantivos de substantivos e de adjetivos, a nova palavra é, por definição, fruto de algo que a precede. 

No caso que nos interessa, o substantivo “marxismo” alude a Marx, mas com ele não se confunde. Tanto é assim que, para dirimir equívocos, confusões e imprecisões, fez-se necessário elaborar uma nova composição: “marxiano”. Comparemos as duas:

Marxiano → Refere-se estritamente àquilo que é da lavra do próprio Marx (seus artigos, ensaios, livros, cartas etc.).

Marxismo → Compreende a doutrina teórica e política inspirada no pensamento de Marx.

O problema do marxismo

Graças à publicação da correspondência de Friedrich Engels (1820-1890), temos acesso ao relato sobre o dia em que Marx ouviu falar, pela primeira vez, em “marxismo”.  Aquilo que para muitos poderia ter soado como uma homenagem ou consagração, pareceu-lhe inaceitável e despropositado, a exaltação de um culto a alguém que jamais teve vocação para ídolo, o que explica o tom da sua reação: “tudo o que sei é que não sou marxista”[4]. Aliás, daquilo que se sabe sobre a personalidade e o temperamento de Marx, é curioso que aqueles que privaram da sua intimidade não tenham antevisto o rechaço[5]:

Ele era dotado de uma mente poderosa, ativa, concreta e não sentimental; de um agudo senso de injustiça, e pouca sensibilidade; e foi repelido tanto pela retórica e emocionalismo dos intelectuais quanto pela estupidez e complacência da burguesia; os primeiros pareciam-lhe, frequentemente, uma conversa despropositada, distante da realidade e, fossem sinceros ou falsos, eram-lhe igualmente irritantes; a segunda parecia-lhe de pronto hipócrita e autoenganada, cega aos aspectos sociais salientes de seu tempo, por estar interessada na busca de riquezas e status social.

Ademais das preferências pessoais de Marx – e para não cedermos ao argumento de autoridade –, há pelo menos quatro razões para rejeitar o termo:

(a) Ele estabelece uma falsa coincidência entre autores declaradamente inspirados em Marx e os escritos de sua autoria;

(b) Ele obstaculiza o exame das divergências e convergências entre Marx e Engels – especialmente naquilo que concerne aos escritos engelsianos publicados após o falecimento de Marx; 

(c) Ele denota uma doutrina hermética e endurecida, tendente à idolatria e aos desvios irracionalistas, incapaz de acompanhar o movimento real da história;

(d) Ele centra os debates em intermináveis disputas hermenêuticas, frequentemente inócuas, cuja única finalidade parece ser a de comprovar, de uma vez por todas, quem é o mais marxista entre os marxistas.

A multiplicidade de marxismos

O mais célere exame da história do chamado marxismo já nos permitiria concluir que, em verdade, não existe – e jamais existirá – um único marxismo, e sim marxismos (no plural). Trata-se, efetivamente, de uma larga tradição teórico-política, que remonta a finais do século XIX e permanece viva até hoje; de um conjunto contraditório e colidente de sucessivas famílias de pensamento, as quais, apesar de sua declarada inspiração na obra de Marx, divergem em ideias, conceitos, proposições, métodos, teorizações, debates e campos de pesquisa. A título de ilustração, rememoremos a conhecida anedota: “três marxistas se reúnem para formar um partido político, e, ao cabo de horas de discussões acaloradas, quatro partidos são fundados”.

Marx via a si mesmo como um cientista; como um intelectual dedicado a compreender a sociedade capitalista em sua gênese, desenvolvimento, consolidação e processos de crise. Foi, acima de tudo, um teórico radical, à medida que identificou as raízes mais profundas do modo de produção capitalista e que procurou organizar as classes exploradas de seu tempo em torno de um projeto político comum: o comunismo.

Se quisermos ser críticos radicais do capitalismo e se acreditamos que uma outra forma de sociabilidade é possível, temos de assumir uma postura verdadeiramente materialista e realista: nosso tarefa é analisar ideias e teorias; submetê-las ao crivo crítico, de modo a verificar, à luz da realidade concreta, qual o seu valor atual. Penso que essa é a maneira mais adequada de entender aquilo que Marx e Engels apelidaram de socialismo científico: um compromisso irreverente, porquanto crítico e iconoclasta, com aqueles que não dispõem das mesmas condições e recursos que nós, que podemos estudar e pesquisar.

Apêndice: obras de referência

Aos que se entusiasmaram com a jornada que se inicia, deixo aqui algumas indicações bibliográficas:

Biografias

Para os que quiserem algo curto, simples e de fácil acesso, recomendo o adorável livrinho de Leandro Konder, que pode ser lido em um único dia; aos que preferirem algo mais aprofundado, a recente publicação de José Paulo Netto é a melhor biografia que se produziu sobre Marx em nosso idioma – e não deixa nada a desejar, quando comparada com textos estrangeiros.

  • KONDER, Leandro. Marx: vida e obra. 7ª. Ed. São Paulo: Paz e Terra, 2011.
  • NETTO, José Paulo. Karl Marx: uma biografia. 1ª. Ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

Dicionário

O dicionário organizado por Tom Bottomore segue imune ao avançar dos anos e é uma ferramenta excelente para tirar dúvidas, no curso das leituras.

  • BOTTOMORE, Tom (ed.). Dicionário do pensamento marxista. 2ª. Ed. Trad.: Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

Histórias

Leszek Kolakowski é autor de uma obra fundamental[6], que bem pode ser complementada pela leitura dos volumes de G. D. H. Cole. Sem esquecermos que somos latino-americanos e brasileiros, confiram os seis volumes organizados por Quartim de Moraes. 

  • COLE, G. D. H. Historia del pensamento socialista, 7 vols. México: Fondo de Cultura Económica, 1974.
  • KOLAKOWSKI, Leszek. Main currents of marxism. Trad.: P. S. Falla. New York: W. W. Norton and Company, 2005.
  • MORAES, João Quartim de; et. al. (org.). História do marxismo no Brasil, 6 vols. São Paulo: UNICAMP, 2007.

Notas de rodapé

[1] Em qualquer manual de introdução às ciências sociais, os estudantes lerão que Marx, em razão de sua teoria social e de seu método de investigação, conquistou, ao lado de Durkheim e Weber, um espaço incontestável na fundação mesma das ciências sociais. Portanto, enquanto matrizes do pensamento social, a trinca de autores conserva seu status de leitura indispensável.

[2] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. Trad.: Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 77.

[3] NOUGUÉ, Carlos. A arte de escrever bem na língua portuguesa. 1ª. Ed. São Paulo: É Realizações, 2023, p. 95.

[4] Carta de Engels a C. Schmidt (5 de agosto de 1890). In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Selected correspondence. 2ª. Ed. Moscow: Progress Publishers, 1965, p. 415.

[5] BERLIN, Isaiah. Karl Marx. 5ª. Ed. New Jersey: Princeton University Press, 2013, p. 3.

[6] Soube que ela foi recentemente traduzida para o nosso idioma, mas ainda não pude conferir a edição.

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