O caminho para a glória

Os passos vem de longe e não podem ser apagados

Nesta semana, no dia 25 de abril, li a triste notícia de que Harry Belafonte tinha morrido. No momento em que soube, prestei uma singela homenagem nas minhas redes sociais e fiquei surpresa. Ele, que em quase um século de vida tanto lutou e conquistou, infelizmente não é conhecido do grande público. Penso que, para defendermos as pautas em que acreditamos, precisamos conhecer e honrar quem veio antes, quem abriu caminhos. Harry Belafonte é um deles.

O clássico Os fantasmas se divertem, do diretor Tim Burton, vencedor do Oscar de maquiagem em 1989, traz uma cena em que as personagens dançam ao som de Banana boat song[1]. Acredito que foi assistindo a este filme que ouvi a música pela primeira vez. Seu ritmo, extremamente “dançante”, é uma tradicional canção jamaicana, exemplo do estilo musical calipso, cuja versão mais conhecida é a cantada por Belafonte.

Quem apenas foca naquela cena cômica, vendo as personagens se mexerem àquele som, pode ignorar o mais importante (e que nada tem a ver com o que é exibido no filme, convenhamos): a potência da letra, que é uma verdadeira denúncia.

Na voz de Belafonte, ouvimos a história de um trabalhador que, durante toda a noite, empilhou bananas e, com o amanhecer do dia, só deseja ir para casa[2]. Quantos trabalhadores, nesta sociedade capitalista (e não utilizo o exploradora por ser uma redundância) de forma exaustiva labutam e só desejam ir para casa descansar por algumas horas, sabendo que em pouco tempo, retornarão para mais uma jornada desgastante?

Belafonte, antes dos trinta anos, já lançava em 1956 seu terceiro álbum, Calypso, que foi nada menos do que o primeiro a vender mais de um milhão de cópias nos Estados Unidos. Engana-se quem pensa que apenas na música se destacou. Seu trabalho como ator lhe rendeu outra uma importante conquista: foi o primeiro negro a ganhar o Emmy do Primetime, pelo seu show Tonight with Belafonte, em 1959.

Imagem de revista com Carmen Jones
Imagem: Heritage Auctions

Um importante filme para a história do cinema que sempre faço questão de mencionar é Carmen Jones, vencedor do Globo de Ouro de Melhor Musical. Isso porque, em 1954, tínhamos como protagonistas pessoas negras: Belafonte e Dorothy Dandridge, que inclusive foi a primeira mulher negra a ser indicada ao Oscar de melhor atriz[3]. Neste mesmo ano, protagonizou o filme Island in the sun, com a atriz branca Joan Fontaine. Por estar implícito o relacionamento entre as personagens, já foi motivo para ameaças de incêndios em cinemas no sul dos Estados Unidos.

É preciso lembrar que, neste período, os Estados Unidos ainda eram um país regido pelas leis segregacionistas Jim Crow. Aos poucos, de forma realmente lenta, rompia-se com a doutrina separados, mas iguais. Em 1964, a Lei dos Direitos Civis se tornou um marco e pessoas como Thurgood Marshall, Martin Luther King, Rosa Parks e Belafonte tiveram um papel importantíssimo, inclusive em diálogos com John Kennedy e na articulação de boicotes como o de Montgomery.

Martin Luther King Jr. (esquerda) com Harry Belafonte, em Nova Iorque (1956)

Belafonte se recusava a atuar em filmes sem retratação da comunidade negra, já que, provavelmente não era seu desejo ser utilizado apenas como um token[4]: desejava uma mudança estrutural e não apenas individual. Um exemplo é o filme de 1963, Uma voz nas sombras[5], cujo papel de protagonista lhe foi oferecido e por ele negado.

Em 1964, um ano após o assassinato de Medgar Evers, três ativistas estavam desaparecidos no Mississippi. Pouco tempo depois, seus corpos foram encontrados: era mais um linchamento da Ku Klux Klan – algo que, infelizmente, ocorria com frequência. Belafonte não pensou duas vezes: arrecadou fundos – cerca de setenta mil dólares – para a luta pelos direitos civis e ligou para o seu grande amigo, o também ator Sidney Poitier, para irem de carro entregar a quantia. Chegaram a ser perseguidos de carro por membros da Klan, mas, felizmente, chegaram a salvo no destino.

Em 1967, a Suprema Corte finalmente decidia sobre o fim da proibição do casamento inter-racial, através do caso Loving. No entanto, os relacionamentos inter-raciais – quer amorosos, quer de amizade -, não passaram a ser imediatamente aceitos a partir daquela decisão. Em 1968, ao cantar On the Path of glory com a cantora Petula Clarke em seu programa de televisão, a marca de automóveis Plymouth, com receio de como o público reagiria, solicitou a retirada de uma cena: a que Petula, uma mulher branca, coloca sua mão no braço de Belafonte. Apesar da objeção do patrocinador, a cena foi ao ar na íntegra, com grandes índices de audiência.

As décadas se passaram e Belafonte seguiu na luta. Em 1985, foi o responsável por organizar artistas para a gravação de We are the world, canção que revolucionou a história, interpretada por quarenta e cinco artistas, com um objetivo: a luta contra a fome[6]. Foi embaixador da UNICEF e coordenou a primeira visita de Nelson Mandela aos Estados Unidos. Seu ativismo político esteve presente ao longo de sua vida: ele se opôs contra o governo Bush e, mais recentemente, contra Donald Trump. Com relação a este último, disse: “O senhor Trump pergunta o que temos a perder, referindo-se aos eleitores negros e nós devemos responder: apenas o sonho, apenas tudo”.

Belafonte ganhou dois prêmios Grammy, seis discos de ouro, um Oscar honorário[7]. Uma vida profissional repleta de realizações e premiações. Só que o seu legado vai além da área profissional. Sua história se mistura com a história da luta pelos direitos civis das pessoas negras nos Estados Unidos. Ele não pensava individualmente, pensava no coletivo.

Encerro o texto de hoje com as palavras de Belafonte em uma entrevista ao New York Times em 2001: “A raiva não mudou. Eu tenho que ser parte em qualquer rebelião que tenta mudar isso tudo. A raiva é um combustível necessário. A rebelião é saudável”[8]. Nós seguimos por aqui, Sr. Belafonte. Obrigada por tudo.

Notas de rodapé

[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AQXVHITd1N4 Acesso em 27 abr. 2023.

[2] Uma versão inusitada foi utilizada na propaganda dos anos 90 para o lançamento do bubaloo banana. Assista em: https://www.youtube.com/watch?v=qjYkpKwWVbI.

[3] Em texto anterior, escrevi sobre Hattie McDaniel, primeira mulher negra a ganhar o Oscar de atriz coadjuvante. O Oscar de melhor atriz só seria entregue a uma mulher negra em 2002, para Halle Berry, ou seja, quase cinquenta anos depois da indicação de Dandridge. Uma curiosidade: Berry interpretou Dandridge no filme de 1999, Introducing Dorothy Dandridge

[4] Sobre o conceito, já o explicamos em texto anterior, em que escrevemos sobre Audre Lorde.

[5] O filme recebeu várias indicações ao Oscar e Sidney Poitier, que aceitou o papel oferecido inicialmente a Belafonte, ganhou o Oscar de melhor ator.

[6] Ao contrário do que pensam, “USA for Africa” não quer dizer “Estados Unidos pela África”, mas sim “United Support of Artists for Africa” (Apoio Unido de Artistas pela África).

[7] Assista ao seu discurso, na cerimonia do Oscar de 2014, aqui: https://www.youtube.com/watch?v=Yfj6Ja86lCs.

[8] Disponível em: https://www.nytimes.com/2001/08/26/magazine/the-way-we-live-now-8-26-01-questions-for-harry-belafonte-sing-out-strong.html. Acesso em 27 abr. 2023.

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