King ainda teria aquele sonho

Sessenta anos de um discurso ainda atual.

No texto da semana passada, comentei o quanto sou curiosa com os acontecimentos históricos do dia. Alguns deles, eu já sei de cor, tamanha a importância e significado que tem para mim. Um deles é a data de aniversário de Martin Luther King.

King nasceu em 15 de janeiro de 1929 e foi um dos mais importantes ativistas na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, há exatos quarenta anos, o Congresso aprova e o presidente Ronald Reagan sanciona lei que estabelece como feriado nacional a terceira segunda-feira do mês de janeiro: o Martin Luther King Day.

Acredito que muitas pessoas conhecem ao menos o seu discurso “I have a dream”. Só que é preciso conhecer mais sobre King e o que acontecia nos Estados Unidos naquela época para compreender a magnitude de seus atos.

Luta pelos direitos civis

A luta pela igualdade de direitos, como o de voto e o fim das leis Jim Crow, que legalizavam a segregação, eram pautas inegociáveis do Movimento pelos Direitos Civis, iniciado na década de 50. Diversas pessoas foram importantes para o Movimento, como Rosa Parks e Medgar Evers. Em 1963, Evers foi assassinado na porta de sua casa, na frente de suas crianças e esposa.

Em 28 de agosto de 1963, apesar de ameaças sulistas e do receio do presidente Kennedy de que algo ruim pudesse acontecer, cerca de duzentas e cinquenta mil pessoas – negras e brancas – marcharam até Washington e se posicionaram diante do memorial de Abraham Lincoln. Para a Marcha de Washington, King tinha preparado um discurso e, assim que usou a frase “Eu tenho um sonho”, deixou o manuscrito de lado e falou diretamente com aquela multidão, tocando em seus corações[1]:

Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos pequenos vão um dia viver em uma nação onde serão julgados não pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter.

Vidas negras importam?

Na semana passada, escrevi sobre Emmett Till, um jovem negro de 14 anos que foi brutalmente assassinado por homens brancos. Ele não foi o único.

Linchamentos, agressões, violências sexuais contra pessoas negras aconteciam, fruto de ódio e racismo. A política do “separados, mas iguais” era endossada inclusive por chefes do Executivo, como o governador do Alabama George Wallace, que proferiu a seguinte frase: “segregação hoje, segregação amanhã, segregação sempre”. Crianças, adolescentes e adultos negros eram alvos de jatos de água, ameaças com cães e bombas.

Em 15 de setembro de 1963, em Birmingham, Alabama, um crime chocante ocorre: membros da Ku Klux Klan colocam uma bomba na Igreja Batista da Rua 16, matando quatro meninas negras. Nenhuma autoridade branca compareceu aos funerais.

Em 1964, finalmente é assinada a Lei dos Direitos Civis nos Estados Unidos, que foi escrita primeiro nas ruas, fruto do empenho de pessoas negras e aliadas[2]. Naquele mesmo ano, no dia 10 de dezembro, King recebe o Nobel da Paz. Havia, no entanto, um longo caminho pela frente.

Selma

Sabemos que de nada adianta a assinatura de uma lei sem que, de fato, na prática, as coisas mudem. E, na prática, a 15ª Emenda, de 1870, não era respeitada: pessoas negras eram cerceadas de exercer o direito constitucional ao voto. Por isso, ocorreu a Marcha de Selma, Alabama. “Além da questão do voto, o simples fato de ser negro em Selma não era fácil”[3], escreveu King.

Na Marcha de Selma, mais de duzentas pessoas foram presas, incluindo King. Prisões obviamente inconstitucionais, já que cerceavam o direito de pessoas se reunirem pacificamente e simplesmente marcharem por seus direitos civis. Cerceava-se a liberdade, o direito de ir e vir que era uma ameaça à segregação ainda legal no país. Para se ter uma ideia de como era o cenário racista em Selma, King conta que foram presos “simplesmente por não podermos tolerar essas condições para nós mesmos e para a nossa nação”[4].

O racismo institucional da polícia e do judiciário tentava a todo custo manter a segregação. Inclusive, um juiz expediu ordem proibindo a participação de King marchasse pacificamente até Montgomery[5]. Mesmo assim, naquele ano o presidente Lyndon Johnson sanciona a lei do direito ao voto.

O sonho acabou?

Em 1968, King foi assassinado. Suas crianças cresceram e não viram o sonho do pai se tornar realidade, o de viver em uma sociedade livre de racismo, em que as pessoas sejam tratadas de forma igual e não segregadas e discriminadas pela cor de sua pele. “O negro ainda não está livre (…) a vida do negro ainda é tristemente deformada pelas algemas da segregação e pelas cadeias de discriminação”[6]. Em 2023, estas palavras proferidas há sessenta anos por aquele ativista que combatia o ódio com amor ainda são – infelizmente – a nossa realidade.

Diversos filmes, peças e documentários foram feitos a respeito de King. É preciso conhecer a história de King para além de um trecho de seu discurso, compreender a sua importância e divulgá-la para que cada vez mais pessoas a conheçam. Nas palavras de King, “sim, estamos em movimento e nenhuma onda de racismo poderá nos impedir”[7]. O sonho ainda vai se concretizar.

Notas de Rodapé

[1] CARSON, Clayborne (org.). A autobiografia de Martin Luther King. Rio: Zahar, 1998. p. 268.

[2] Idem, p.292

[3] Idem, p. 326.

[4] Idem, p. 324.

[5] Idem, p. 331.

[6] Idem, p. 268

[7] Idem, p. 337.

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