Alemanha, meados dos anos 1970.
Era véspera de Natal. Fazia tempo que os três amigos não se viam. Tinham se separado anos antes, quando, pela impostura do Ato Institucional n. 5, acharam-se obrigados a trocar o Brasil pela Europa. O primeiro seguira para Portugal, onde ainda vigorava a ditadura salazarista; o segundo preferira a Itália, que, de fato, vivia dias melhores; o terceiro, o anfitrião, optara pela pequena cidade de Bonn, onde Marx iniciara, mais de um século antes, seus estudos superiores. Eram, com toda a certeza, três comunistas de carteirinha, mas não tinham aprovado a tática suicida da luta armada, que se manteve circunscrita apenas a alguns grupelhos.
Logo à chegada, o abraço tão aguardado, daqueles bem apertados, sem pudor ou embaraço: remédio ideal para aplacar os males da saudade. Após tanto tempo trocando cartas, finalmente poderiam pôr a conversa em dia, coisa que não se faz de copo vazio. Os hóspedes dão preferência ao whisky, enquanto o anfitrião se serve de uma bela taça de vinho tinto.
Devidamente municiados, o papo é rico e diversificado: principiam discutindo a conjuntura brasileira, avançam para a política internacional, para, só então, retomarem temas que se lhes pareçam mais agradáveis, como a música popular, o cinema e a literatura – Os Maias (1888), de Eça de Queiroz (1845-1900), é tido pelos três como o maior romance da língua. À medida que os copos vão sendo reabastecidos, fica óbvio que uma única garrafa de whisky não bastará para saciar os dois visitantes; o anfitrião, mais contido e moderado, sorve lentamente o vinho, apreciando a boa safra.
Nem bem haviam aberto a segunda garrafa, cantarolando um samba antigo, quando o telefone começou a tocar. Decerto seria alguém procurando desejar-lhe um feliz Natal – ambos pensaram –, mas quem poderia ser? A dúvida foi rapidamente sanada: era José Guilherme Merquior, o jovem crítico literário e ensaísta, que viria a se tornar um titã do liberalismo brasileiro e que também se encontrava em Bonn, devido a sua condição de diplomata de carreira.
A ligação se estende por bem mais que a duração protocolar, revelando a amizade e o carinho que, há tempos, um tinha pelo outro. Enciumado, um dos convidados, então já condenado pelo scotch, decide repreender, em alto e bom som, o que entende como descaso do anfitrião:
– Vai voltar para a sala ou vai passar a noite inteira falando com esse liberalzinho de merda?
– Já vou. – Responde, com a secura de um deserto, enquanto cobre, com a mão, o bocal do telefone.
Poucos minutos depois, retornando à sala de estar e antecipando-se a uma nova reprimenda, apressa-se, ele mesmo, em reprovar a conduta do amigo.
– Vocês dois já beberam demais. Vamos mudar o rumo dessa prosa e, amanhã, falaremos sobre isso.
Entre grandes amigos, quase irmãos, a anistia é sempre imediata. A noite transcorre com a máxima tranquilidade, repleta de histórias, gargalhadas e cantorias – e quem já estava enfrascado, procede para um porre homérico.
Na manhã seguinte, despertos em uma ressaca amarga, o dono da casa, de modos aristocráticos, já se adiantara, preparando o desjejum, e os aguardava. Após servi-los de uma boa xícara de café, era impossível não notar o estranho contraste entre a doçura do olhar e a gravidade do tom de voz, como que lembrando a figura de um pai rígido e desapontado, mas compreensivo:
– Camarada, sobre ontem: eu bem sei que você não gosta dele, mas você precisa entender que nós demos muita sorte, pois conseguimos escapar, quase ilesos, daquele pesadelo. Meu irmão não teve a mesma sorte; foi detido e torturado, e foi justamente aquele, que você chamou de “liberalzinho de merda”, quem deu a cara a tapa e conseguiu liberá-lo. É por essas e outras que eu tenho, para com ele, uma dívida de gratidão eterna e inestimável.
Moral da história: a tolerância deve ser um exercício constante; liberdade, no duro, é aquela em que, observados os marcos de civilidade, também são contemplados os divergentes. Mesmo porque, é sempre bom lembrar: nem todo adversário político é um canalha.
Crítica e estética
Carioca da gema, José Guilherme Merquior[1] nasceu na Tijuca, aos 22 de abril de 1941. Ainda bem moço, passaria a integrar, pela via do ensaísmo de crítica cultural, aquela frondosa geração contestadora dos anos 1960, que frutificou na poesia de Bruno Tolentino (1940-2007) e no cinema de Glauber Rocha (1939-1981) – grandes amigos seus.
Ainda com 19 anos de idade, iniciou sua carreira de articulista, publicando ensaios de crítica e estética, que, em 1965, seriam selecionados e reunidos em seu primeiro livro, Razão do Poema, no qual se acha O Poema do Lá[2] (1964), seu extraordinário estudo sobre Canção do Exílio (1843), de Gonçalves Dias (1823-1864). Antes mesmo de haver debutado em livro, Merquior casou-se com Hilda Vieira de Castro (1940-2019), sua primeira namorada, com quem permaneceu até seus últimos dias e cujo amor foi homenageado em verso pelo nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Desde então, as preocupações estético-críticas jamais deixaram de ocupar aquele que, com carradas de razão, Eduardo Portella (1932-2017) qualificou como “uma fascinante máquina de pensar”. Ano após ano, o jovem seguia multiplicando títulos de notável agudeza e vigor crítico, merecendo destaque: Formalismo e Tradição Moderna[3] (1974), A Estética de Lévi-Strauss[4] (1975) – considerado pelo próprio antropólogo francês uma prova de gênio –, Verso Universo em Drummond[5] (1976) e De Anchieta a Euclides[6] (1977).
Suas obras de crítica literária eram constantemente recebidas com deslumbramento e veneração, consolidando-o como o principal crítico de sua geração, merecendo elogios rasgados de Murilo Mendes (1901-1975), Jorge Amado (1912-2001), João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Antonio Candido (1918-2017) e tantos outros. A consequência já era mais do que previsível: em 11 de março de 1982, é eleito para ocupar a cadeira 36 da Academia Brasileira de Letras[7].
Crítica e política
Doutor em Sociologia pela prestigiosíssima London School of Economics, a crítica merquiorana – em sua maioria, originalmente publicada em inglês – foi acolhida com entusiasmo por alguns dos mais destacados intelectuais europeus do século XX – fato que, por si só, poderia contribuir para reduzir, ainda que só um pouquinho, nosso notório complexo de vira-lata. O polímata caiu nas graças de Ernest Gellner (1925-1995), mereceu a admiração de Isaiah Berlin (1909-1997) e Norberto Bobbio (1909-2004), e, ao conversar pela primeira vez com Raymond Aron (1905-1983), este, absolutamente estupefato, indagou aos presentes: “Quem é este jovem que leu tudo?”.
A quem interessar possa, um brevíssimo roteiro literário, contemplando apenas os trabalhos mais renomados.
Marinheiros de primeira viagem fariam bem em começar por O Argumento Liberal[8] (1983), uma coletânea de ensaios de leitura fluida e segura. Aos afeiçoados pelo debate em torno da teoria da história, A Natureza do Processo[9] (1982), a despeito de só ser encontrável em sebos, é leitura das mais fecundas. Para um estudo mais abrangente em história das ideias liberais, ademais de uma esplêndida síntese do pensamento merquiorano, O Liberalismo: Antigo e Moderno[10] (1991), é parada obrigatória.
Estudantes que ainda se vejam acometidos das mazelas foucauldianas encontrarão um ótimo antídoto em Foucault: ou o Niilismo de Cátedra[11] (1985). Aos curiosos da Escola de Frankfurt, Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin[12] (1969), redigido quando o autor ainda nutria certo apreço pela contribuição benjaminiana, é um exemplar instigante e valioso, além de disparar alguns petardos iniciais contra a relação forçada entre marxismo e psicanálise, que, invariavelmente, desagua no materialismo histérico-dialético. Leitura complementar, e decididamente mais densa e aprofundada, é a crítica contida no De Praga a Paris[13] (1986), também aguardando reedição. Por fim, e não menos importante, O Marxismo Ocidental[14] (1987) é obra de fôlego e que, a despeito de todas as discordâncias que possam sobrevir, segue sendo um bálsamo para o intelecto crítico.
Vitimado por um câncer intestinal, José Guilherme Merquior nos deixou em 7 de janeiro de 1991, quando sequer tinha completado 50 anos. Ainda assim, para além de sua atividade de articulista, ele nos legou 19 livros; uma fortuna crítica indispensável aos que, à esquerda e à direita, conservem a convicção na objetividade do conhecimento e no pensamento livre de peias.
Notas de Rodapé
[1] Um pequeno documentário foi produzido pela É Realizações, editora que cuida da publicação das obras completas de Merquior, e está disponível gratuitamente. Cf.: https://youtu.be/3frJg5gVdqo
[2] MERQUIOR, José Guilherme. Razão do poema: ensaios de crítica e de estética. São Paulo: É Realizações, 2013, pp. 59-90.
[3] MERQUIOR, José Guilherme. Formalismo e tradição moderna. São Paulo: É Realizações, 2015.
[4] MERQUIOR, José Guilherme. A estética de Lévi-Strauss. São Paulo: É Realizações, 2013.
[5] MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em Drummond. São Paulo: É Realizações, 2015.
[6] MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira. São Paulo: É Realizações, 2014.
[7] Para ouvir o belíssimo discurso de posse, cf.: https://youtu.be/7EL9qRP5dys
[8] MERQUIOR, José Guilherme. O argumento liberal. São Paulo: É Realizações, 2019.
[9] MERQUIOR, José Guilherme. A natureza do processo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
[10] MERQUIOR, José Guilherme. O liberalismo: antigo e moderno. São Paulo: É Realizações, 2014.
[11] MERQUIOR, José Guilherme. Foucault: ou o niilismo de cátedra. São Paulo: É Realizações, 2021.
[12] MERQUIOR, José Guilherme. Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin: ensaio crítico sobre a Escola neo-hegeliana de Frankfurt. São Paulo: É Realizações, 2017.
[13] MERQUIOR, José Guilherme. From Prague to Paris: a critique of structuralist and post-structuralist thought. London: Verso, 1986.
[14] MERQUIOR, José Guilherme. O marxismo ocidental. Trad.: Raul de Sá Barbosa. São Paulo: É Realizações, 2018.
