Mendes Correia: um criminólogo português nos trópicos

Em 1934, um criminólogo português visita o Brasil. Quais foram as suas impressões?

Gosto de ler diários de viagem. Aquilo que principiou como mero encargo de pesquisa – mediante o exame dos diversos textos que, já na segunda metade do século XVI, eram difundidos por toda a Europa, trazendo notícias do Novo Mundo –, foi se transmudando, sem que eu mesmo me desse conta, em um exótico passatempo. Não em todos os casos, a bem da verdade. Se há exemplares como o Diálogo sobre a Conversão do Gentio (1557), de José de Anchieta (1534-1597), em que se verifica uma autêntica qualidade literária, há outros tantos, como o Tratado Descritivo do Brasil em 1587, de Gabriel Soares de Sousa (154?-1591), cuja literatice, desértica e mal-ajambrada, só não despontou para o anonimato por ser de interesse documental.

Desde então, venho cultivando o hábito de adquirir livros do gênero. A última aquisição foi o Cariocas e Paulistas: Impressões do Brasil (1935), do condecoradíssimo Mendes Correia (1888-1960), antropólogo e médico português, catedrático de Antropologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto. Já o conhecia de Os Criminosos Portugueses: Estudos de Anthropologia Criminal[i](1914), mas me agradou lê-lo em uma prosa mais desimpedida, por assim dizer, ademais do tema, decididamente mais atraente a um leitor brasileiro.

O diário foi escrito por ocasião de um convite que, em finais de abril de 1934, o professor lusitano recebera de Cândido de Oliveira Filho (1871-1954), então Reitor da Universidade do Rio de Janeiro (atualmente, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ), para, entre junho e julho do mesmo ano, realizar uma série de palestras no recém-inaugurado Instituto Luso-Brasileiro de Alta Cultura. Aquiescendo prontamente ao convite, o professor embarca em sua primeira viagem ao Brasil, acompanhado de sua esposa e munido de uma cópia de Os Sertões (1902), que releu durante a jornada.

Nas trezentas páginas que compõem o diário, Mendes Correia deixou registradas as principais impressões que tirou de suas andanças por estas paragens, em que teve como guias personalidades do talhe de Leonídio Ribeiro (1893-1976), Oliveira Vianna (1883-1951), Roquette Pinto (1884-1954) e Afrânio Peixoto (1876-1947).

Aportando na Cidade Maravilhosa, ficou absolutamente perplexo diante de tamanha beleza natural, pondo-a entre as cidades mais deslumbrantes por ele visitadas. Nem mesmo a profusão de “absurdos e geométricos arranha-céus”, autênticas monstruosidades modernas, e o contato com os “devaneios da superstição, da teosofia e do positivismo”[ii] comprometeram-lhe a experiência, mas o autor faria questão de frisá-los, mais adiante[iii]:

O espiritismo e a teosofia possuem muitos cultores no Brasil, que tomam a sério cartas escritas de além-túmulo por Vítor Hugo, S. Paulo ou Jesus Cristo! Também tive a surpresa de ver no Rio uma Igreja Positivista. Julguei que já no mundo não houvesse um só adepto da ‘religião’ de Comte!

No mais, reconhecemos, com uma nota de pesar, que alguns dos elogios prestados ao Rio de Janeiro não têm mais razão de ser no presente: o encantamento com a Cinelândia – o bairro dos cinemas (!) –, o preço módico, quase gratuito, dos transportes públicos e a intensíssima luminosidade artificial das ruas, capaz de converter a noite em dia[iv] – tudo isso se perdeu no tempo, restando-nos a memória de papel do que uma vez foi.

De maneira geral, o saldo da viagem foi positivo, pois Mendes Correia só indica duas surpresas desagradáveis ao longo de toda a sua peregrinação: a dificuldade de se adaptar ao clima tropical e o súbito falecimento de Miguel Couto (1865-1934), às vésperas do encontro agendado para conhecê-lo pessoalmente. O aguardado intercâmbio intelectual, na Academia Nacional de Medicina, deu lugar ao cerimonial funerário, no Cemitério São João Baptista, onde pôde testemunhar as mais belas homenagens póstumas ao ilustre médico carioca[v].

Naquilo que concerne às afinidades teóricas, o autor não poupa elogios ao racialismo pseudocientífico de Oliveira Vianna e Renato Kehl (1889-1978), ressaltando a engenhosidade suas obras e seus méritos acadêmicos. Quanto às posições de cunho mais estritamente político, eivadas de solidariedade salazarista, são dignas de nota as considerações tecidas em favor de Gustavo Barroso (1888-1959), expoente do que havia de mais reacionário àquele tempo[vi]:

“Como político, Gustavo Barroso é um dos dirigentes do integralismo brasileiro. (…) Sentia-se ele – que, aliás, resplandece de juventude na sua figura aprumada e varonil – tão moço como esses ‘jovens, cultos e bravos companheiros da grande bandeira integralista’, ida do sul à Amazônia, companheiros aos quais dedicava o livro O integralismo de norte a sul, que, dias depois, me oferecia e que, tão justo na sua crítica ao socialismo e sobretudo ao comunismo, contém páginas formosas de literatura (…).”

O Brasil é pintado com cores vivas, mas era imprescindível destacar que, em se tratando de país de dimensões continentais, os contrastes ainda imperavam. Nesse sentido, personagens como Lampião (1898-1938) apareciam como um caso tipicamente regional, “fora da sociedade policiada brasileira”[vii], onde a lei e a ordem ainda não se haviam afirmado[viii]:

“Mas – ninguém se iluda! – apesar de todos os facínoras que logram viver dentro das urbes mais civilizadas, no Rio de Janeiro ou em S. Paulo não há Lampiões nem mesmo os gangsters que ilustram a história criminal de grandes metrópoles norte-americanas.”

Dos dois lados do Atlântico, a questão da manutenção da ordem pela via penal era de máxima urgência, e sob os auspícios da criminologia. Não é casual que, ao término do Congresso, realizado de 16 a 23 de junho, no Rio de Janeiro e em São Paulo, os expositores se reuniram para um “cordialíssimo almoço”, oferecido pelo então chefe da polícia federal, um tal Capitão Filinto Müller[ix] (1900-1973)…

E é curioso que, apesar das diversas passagens elogiosas ao mais tacanho racialismo pseudocientífico, Mendes Correia não assuma uma posição fechada acerca da questão mais candente daquele tempo: a mestiçagem. Aliás, em dado momento do diário, há um trecho em que o autor aborda aquele que será o leitmotiv da obra freyreana: o entrechoque entre desenvolvimento e tradição, a inevitabilidade da modernização como uma ameaça à identidade cultural brasileira[x]:

“E, no entanto, sob o estonteamento febril do número e da roda dentada, atração dum país novo que desnecessariamente procura compensar com a sua atividade apressada as limitações aparentes do seu horizonte histórico, sente-se um Brasil sereno, calmo, luminoso, de ritmo regular e contínuo, de raízes mais fundas na alma dos homens e na natureza. É um Brasil de poetas, de cientistas, de políticos, de trabalhadores, é um Brasil que existe em todas as classes, na imaginação dos artistas, e na vontade dos homens de ação, nem sempre o mais aparatoso, mas, na verdade, o mais sólido, o mais real, o mais permanente. É o Brasil que tem uma antiquíssima história e que se projeta no futuro, mais longe do que o outro ou do que os outros. É o Brasil de que gostei, aquele que me atrai, que admiro, em que tenho fé. É o Brasil verdadeiro, belo e eterno!”

Nas páginas já corrompidas de um Mendes Correia, o interesse é quase etnográfico. Lê-se Mendes Correia para retomar, sob o ponto de vista de um conservador, uma época histórica, seus intelectuais, suas ideias e suas interações teóricas e políticas. Trata-se, portanto, de uma fonte para o intelecto crítico, uma vez que oferece, em primeira mão e com riqueza de detalhes, um panorama da miséria da criminologia: seu passado trágico e sua atualidade farsesca. Aos que não o leram, recomendo vivamente.

Notas de rodapé

[i] Cf.: CORREIA, Mendes. Os criminosos portugueses: estudos de anthropologia criminal. 2ª. Ed. Coimbra: F. França Amado, 1914.

[ii] CORREIA, Mendes. Cariocas e paulistas: impressões do Brasil. Porto: Fernando Machado e Cia, 1935, p. 38.

[iii] Ibidem, p. 182.

[iv] Ibidem, p. 39.

[v] Ibidem, pp. 62-64.

[vi] Ibidem, p. 73.

[vii] Ibidem, p. 85.

[viii] Idem.

[ix] Ibidem, p. 135.

[x] Ibidem, pp. 54-55.

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