Uma Criminologia desterrada: breves notas de uma história ainda desconhecida

Quem precisa de uma História da Criminologia Brasileira?

Na Introdução (1844) que dedicou à sua Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, encontra-se um joveníssimo Karl Marx (1818-1883) já na plenitude de sua forma estilística. São páginas decididamente desafiadoras ao leitor não iniciado, mas que, uma vez apreendidas em sua densidade filosófica, constituem um autêntico portal para o alumbramento.

Amargando o exílio parisiense, resultante de sua atividade jornalística, à frente da Gazeta Renana (Rheinische Zeitung), veículo em que teceu duras críticas ao reinado reacionário de Frederico Guilherme IV (1795-1861), Marx encantou-se com o nascente movimento socialista local, e pôde perceber, com máxima nitidez, o profundo atraso sociopolítico de sua terra natal. Da comparação entre França e Prússia, surgiu a intrigante questão: como explicar que, a despeito de todo o atraso sociopolítico germânico, tivessem brotado, ali mesmo, expoentes intelectuais da estirpe de um Kant (1724-1804), de um Goethe (1749-1832), de um Hegel (1770-1831)? Como explicar que um cenário, ainda ordenado à base do tacape e do bastonete, fosse o palco de protagonistas tão sofisticados? Eis o porquê[i]:

Assim como as nações do mundo antigo vivenciaram a sua pré-história na imaginação, na mitologia, nós, alemães, vivenciamos a nossa pós-história no pensamento, na filosofia. Somos contemporâneos filosóficos do presente, sem sermos contemporâneos históricos. A filosofia alemã é o prolongamento ideal da história alemã. (…) Em política, os alemães pensaram o que as outras nações fizeram.

Para compreender o trecho acima, o leitor precisará recorrer ao conceito marxiano de Traumgeschichte[ii] (“história dos sonhos”). Reconhecendo um descompasso ou disjunção entre a política e a filosofia germânicas, Marx alega que os avanços políticos conquistados por outras nações acabaram se refletindo na filosofia de seus conterrâneos, expressando uma correlação entre a filosofia germânica e a própria modernidade: Kant, Goethe, Hegel e tantos outros pensaram o que outras nações fizeram. Tratava-se, contudo, de um pensamento ativo, pois nenhuma comunidade ilustrada poderia desconsiderar, por exemplo, a revolução copernicana proclamada pelo Mestre caturra de Königsberg.

E quanto a nós, brasileiros? Joaquim Nabuco (1849-1910), apesar de seu inconfundível “sotaque” britânico, denunciou, em português cristalino e com deliciosa ironia, a autoimagem fantasiosa que o homem de letras brasileiro tinha de si: “Ele é pela inteligência e pelo espírito cidadão francês; nasceu parisiense, em que lugar de Paris, eu ignoro; vê tudo como pode ver um parisiense desterrado de Paris”[iii]. Décadas mais tarde, com o irromper do moderno ensaísmo interpretativo do Brasil, este traço da nossa psicologia social seria reexaminado e expandido por Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): “Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra”[iv]. Em suma[v]:

“Vestindo, comendo, morando e pensando à europeia, não tardaram os brasileiros a se iludir sobre si mesmos, a se acreditar em tudo e por tudo um povo mediterrâneo, transplantado para a América. Um povo velho habitando uma pátria nova.”

Nosso histórico francófono e francófilo é público e notório – de Chateaubriand (1768-1848) a Renan (1823-1892), passando por Durkheim (1858-1917) e Le Bon (1841-1931), Sartre (1905-1980) e Lévi-Strauss (1908-2009), até alcançar Foucault (1926-1984), Deleuze (1925-1995) e Derrida (1930-2004) –, mas a questão mais abrangente, acerca da perpetuação deste traço psicossocial fica para a meditação do leitor. Mais profícuo seria pensarmos este desterramento cultural de maneira mais específica, pela via criminológica, ou, a bem dizer, de uma história da criminologia brasileira – ainda por ser escrita.

Afinal, desde a publicação dos primeiros escritos de Nina Rodrigues (1862-1906) ou dos Estudos de Sociologia Criminal[vi] (1900), de Paulo Egydio (1842-1906), até a mais recente Criminologia[vii] (2021) do professor Juarez Cirino dos Santos, raríssimos foram os esforços de investigar a história dos nossos pensamentos criminológicos. É de ruborescer a vergonha que, ao cabo de mais de um século, jamais se tenha publicado uma história, rigorosa e sistemática, da nossa criminologia.

Tudo o mais constante, as sucessivas gerações de criminólogos vão sendo formadas sem qualquer notícia de seu próprio passado intelectual, ao que se veem dependentes de manuais estrangeiros – alguns muito bons, como o do professor Anitua[viii] –, carentes de um exame detido das nossas tradições intelectuais. Como se vê, não se está fazendo tempestade em copo d’água, e para que se tenha uma ideia da dimensão do problema, recomenda-se ao caro leitor o seguinte exercício introspectivo: considerando a primeira metade do século XX, liste os nomes de todos os criminólogos brasileiros que lhe vierem à mente. Certamente o nome de Roberto Lyra (1902-1982) encabeçaria o elenco, e talvez alguém ainda se recorde de um Afrânio Peixoto (1876-1947), mas e quanto ao restante?

De fato, a criminologia brasileira anda desmemoriada: seus clássicos, em lugar de figurarem entre os objetos de pesquisa da predileção dos estudantes, são peças de antiquário, descartáveis aos olhos de quem só se interessa pelas últimas novidades editoriais, sendo relegados, portanto, às prateleiras empoeiradas de alguns poucos sebos. Entretanto, quando o assunto é best-seller, nos dobramos alegremente aos modismos de uma única temporada, coisa que, vez por outra, acaba rendendo situações constrangedoras, típicas de um pensamento passivo e irrefletido. Exemplo bastante significativo é o do popularíssimo decolonial thinking: no afã de assimilá-lo, o chamado movimento “decolonial” descuidou-se do próprio idioma, em um curioso caso de estrangeirismo de pronúncia abrasileirada. E como ignorar o imenso prestígio da tal epistemologia do sul? Concebida por um pós-moderno lusitano (!), aquilo que aparece como um instrumento emancipatório para os povos do sul global não passa, quando muito, de irracionalismo[ix] antimoderno em estado bruto.

É evidente que são justas e necessárias as críticas ao eurocentrismo, mas também é verdade que há maneiras e maneiras de fazê-las: ressuscitar o irracionalismo europeu de finais do Oitocentos é tão-somente reproduzir, de modo acrítico, os delírios mais sombrios do passado – só que, agora, com um verniz de esquerda. Se os prussianos de outrora protagonizaram uma história dos sonhos, estaríamos nós condenados a reencenar uma história dos pesadelos?

Se a ideia é construir uma criminologia descolonizada, atenta às particularidades e singularidades da nossa formação social, não se deve buscar modelos pré-montados na literatura estrangeira; é imperativo conhecer as fontes primárias. Que se leia Cesare Lombroso (1835-1909) e Enrico Ferri (1856-1929), mas sem descuidar de Oliveira Vianna (1883-1951) e Renato Kehl (1889-1978); leia-se Émile Durkheim (1858-1917), mas sem ignorar Fernando de Azevedo (1894-1974).

Às vésperas do bicentenário da Independência, retomemos aquela efervescência intelectual que se vinha gestando, no Brasil, desde os anos 1920 e que se instalou concretamente na década de 1930: fosse pelo ensaísmo (Freyre, Buarque de Holanda, Prado Jr.), fosse pelo romance nordestino (Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego etc.), a tônica era a da redescoberta do próprio país, pois se sabia muito bem que qualquer projeto de futuro é sempre dependente do conhecimento que se tem sobre o próprio passado. Hoje, para bem e para mal, uma coisa é certa: o futuro não é mais o que costumava ser…

Notas de rodapé

[i] MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 2ª. Ed. Trad.: Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2010, pp. 150-151.

[ii] Para um aprofundamento deste e de outros tanto temas pertinentes à produção do jovem Marx, cf.: LEOPOLD, David. The young Karl Marx: german philosophy, modern politics, and human flourishing. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.

[iii] NABUCO, Joaquim. Portugal e Brasil. In: Obras completas de Joaquim Nabuco, vol. IX: escritos e discursos literários, l’option. São Paulo: Progresso Editorial, 1949, p. 44.

[iv] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 27ª. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 35.

[v] PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira: prosa de ficção (de 1870 a 1920). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 21.

[vi] EGYDIO, Paulo. Estudos de sociologia criminal: do conceito geral do crime segundo o methodo contemporaneo. São Paulo: Revista dos Tribunaes, 1941.

[vii] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Criminologia: contribuição para crítica da economia da punição. 1ª. Ed. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021.

[viii] ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Trad.: Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2008.

[ix] Em uma passagem de um de seus livros mais conhecidos, o autor declara (grifos meus): “Com a mesma prevenção antitotalitária, o novo paradigma suspeita da distinção entre aparência e realidade. (…) Esta pretensão de saber distinguir e hierarquizar entre aparência e realidade e o facto de a distinção ser necessária em todos os processos de conhecimento tornaram possível o epistemicídio, a desclassificação de todas as formas de conhecimento estranhas ao paradigma da ciência moderna sob o pretexto de serem conhecimento tão-só de aparências. A distribuição da aparência aos conhecimentos do Sul e da realidade ao conhecimento científico do Norte está na base do eurocentrismo.” In: SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 13ª. Ed. São Paulo: Cortez Editora, 2010, p. 331.

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