O sentido do materialismo marxiano

De todas as intervenções que atravessam a tradição marxista, a que talvez tenha se revelado mais fastidiosa e inócua, com o avançar das décadas, é aquela em torno de um pretenso corte epistemológico[1], cindindo a obra marxiana ao meio: de um lado, um jovem Marx, eminentemente filosófico e ainda às voltas com o idealismo objetivo de Hegel; de outro, um Marx amadurecido, terminantemente científico, devotado à crítica da economia política. Entre os divergentes, bem mais arrazoado foi o Mestre de Budapeste, que se manteve aferrado ao método marxiano[2].

Todavia, por mais descabidas que possam soar, hoje, as aspirações de desmembrar ou lotear o pensamento marxiano, como que apartando-o de si mesmo, igualmente descabido seria aventar o extremo oposto, reivindicando a imutabilidade teórico-política do autor de O Capital. Nenhum de nós nasce pronto: nossas trajetórias acadêmicas e pessoais, estão sempre marcadas por suspensões e continuidades, dado que a reflexão persistente e rigorosa costuma conduzir tanto a inflexões quanto a convicções. Se, em sua juventude, Marx esteve vinculado ao grupo dos jovens hegelianos, incorporando alguns elementos idealistas em suas primeiras elaborações, foi, quando muito, um idealista dissidente[3]; e se, a partir de 1844, tiveram início seus estudos críticos em economia política, em nenhum momento se poderia afirmar que estes últimos arrefeceram suas preocupações filosóficas.

Com o intuito de esclarecer a posição defendida, e a pretexto de introduzir o tema do materialismo marxiano, retomemos um documento antigo e pouco lembrado…

A carta ao pai

Aos 10 de novembro de 1837, um joveníssimo Marx, com menos de 20 anos de idade, matriculado desde outubro de 1836 na faculdade de direito da Universidade de Berlim, redigia uma longa carta[4] a seu pai, o velho Heinrich. Trata-se de um documento imprescindível aos estudiosos, uma vez que nos permite captar, com riqueza de detalhes, as incertezas e angústias de um rapaz que, desde aquele momento, já se mostrava um turbilhão intelectual. Da leitura, apreendem-se: seus interesses estéticos e desenganos poéticos; seus embates com o idealismo de Kant e Fichte, bem como a má impressão que lhe causaram, de início, os escritos de Hegel[5]; seus estudos filosóficos e jurídicos, que haviam desembocado em uma encruzilhada; suas aproximações intelectuais e os consequentes afastamentos; mas, acima de tudo, o amor que nutria pelos pais e pela mulher de sua vida, Jenny von Westphalen (1814-1881).  

Naquilo que concerne ao método e ao materialismo, permita-nos, o estimado leitor, a citação de uma passagem extensa[6]:

“Em meu estudo, tudo assumia a forma acientífica do dogmatismo matemático, no qual o espírito gira em torno da coisa, tangenciando-a aqui e ali, sem que a coisa possa se desdobrar ela mesma em algo rico e vivo, mas se apresentando de antemão como um obstáculo para compreender a verdade. O triângulo deixa que o matemático o construa e o demonstre como uma mera representação dentro do espaço, sem chegar a desenvolver-se sob outras formas, pois, para que adquirisse outras posições, seria necessário relacioná-lo com outras coisas, e então veríamos como isto traz distintos resultados com relação ao já exposto e assume diferentes relações e verdades. Mas, na expressão concreta de um mundo de pensamentos vivos como o são o Direito, o Estado, a Natureza, toda a Filosofia, é necessário se deter para escutar o próprio objeto em seu desenvolvimento, sem se empenhar em imputar-lhe classificações arbitrárias, e sim deixando que a própria razão da coisa siga seu curso contraditório e encontre em si mesma a sua própria unidade.”   

Karl Marx em carta para seu pai, Heinrich Marx

Em todo o pensamento maduro de Marx, achamos consolidada a noção de que uma teoria social[7] compreende a “reprodução ideal do movimento real do objeto”[8] da investigação. O pressuposto ontológico desta categorização é o seu materialismo, cujo dinamismo já se fazia presente, desde a Carta endereçada a seu pai, quando afirmara a necessidade de “escutar o próprio objeto em seu desenvolvimento”. Como se observa, Marx já declarara seu afastamento em relação aos procedimentos meramente representativos e descritivos; seu intuito era absorver e reproduzir (no sentido de reconstruir) o movimento real (e contraditório) do objeto.

Desdobrando-se este pressuposto ontológico a partir dos esforços intelectuais de Mario Bunge, dois postulados fornecem uma síntese preliminar da ontologia materialista[9]: (1) todo objeto é ou material ou conceitual, e não ambos ao mesmo tempo; (2) todos os constituintes do mundo (ou do universo) são materiais. Tal materialismo é dinâmico, o que explica o enfoque marxiano no movimento real do objeto, uma vez que tudo aquilo que existe no mundo real é mutável. Para todo x: (x é material = x é mutável); (x é material = x tem energia[10]).

Por último, em face da elaboração acima, caberia uma sugestão para a atualização da formulação marxiana: substituir-se o termo “movimento” por “mudança” ou “mutação”[11]. A sugestão parte da seguinte linha de raciocínio:

  1. “mudança” é gênero do qual “movimento” é espécie;
  2. “movimento” implica deslocamento físico, denotando mudança quantitativa[12];
  3. Marx parece estar mais interessado em mudanças qualitativas, de tipo estrutural.

De resto, o que se acha, desde a primeira juventude, é um pensador que já apresenta os contornos iniciais e os desenvolvimentos metódicos preliminares daquilo que, anos mais tarde, se afirmaria como um projeto de crítica radical, centrado na análise da produção da riqueza material, estruturada em determinadas relações sociais de produção. Se ser radical é agarrar a coisa pela sua raiz, tal raiz é material e historicamente situada, pois tudo aquilo que é material é necessariamente mutável.

Notas de rodapé

[1] Cf.: ALTHUSSER, Louis. For Marx. Trad.: Bem Brewster. London: Verso, 2005.

[2] Cf.: LUKÁCS, György. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. 2ª. Ed. Trad.: Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

[3] BERLIN, Isaiah. Karl Marx. 5ª. Ed. New Jersey: Princeton University Press, 2013, p. 73.

[4] A missiva encontra-se vertida ao nosso idioma. Cf.: Carta ao pai. In: NETTO, José Paulo; YOSHIDA, Miguel Makoto Cavalcanti (eds.). Cultura, arte e literatura: textos escolhidos: Karl Marx e Friedrich Engels. 2ª. Ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012, pp. 295-304.

[5] (Grifos meus) “Abandonado o idealismo, que, diga-se de passagem, fora comparado e nutrido pelo de Kant e de Fichte, dediquei-me a buscar a ideia na própria realidade. Se, antes, os deuses moravam sobre a terra, agora se tornaram o centro dela. Eu havia lido alguns fragmentos da filosofia hegeliana, cuja bizarra e forte melodia não me agradava.” In: Ibidem, p. 300.

[6] (Grifos meus) In: Ibidem, p. 297.

[7] O tema será discutido futuramente, com maior profundidade, em artigo específico.

[8] NETTO, José Paulo. Karl Marx: uma biografia. 1ª. Ed. São Paulo: Boitempo, 2020, p. 398.

[9] BUNGE, Mario. Caçando a realidade: a luta pelo realismo. Trad.: Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2010, p. 55.

[10] “A energia é a propriedade universal, universal por excelência. Ademais, a energia é um universal in re: inseparável das coisas, em vez de ser ou ante rem (anterior a elas) ou post rem (depois delas).” In: Ibidem, p. 36.

[11] Teoria social é a reprodução ideal (ou mental) da mudança (ou mutação) real do objeto.

[12] É evidente que uma mudança quantitativa pode render saldo qualitativo, mas isso não altera a sua especificidade básica. 

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