Uma vez mais, o povo nordestino nos salvará do abismo!

O mapa da região nordeste, sobreposto a um punho esquerdo cerrado.

No sábado passado, aos 8 de outubro, celebramos mais um Dia do Nordestino. A data é, evidentemente, das mais significativas para a nossa cultura, mas, desta vez, sua importância foi realçada, pois veio em resposta à enxurrada de manifestações de xenofobia e racismo de que, mais uma vez, os nordestinos foram alvo. Como era de se esperar, as manifestações foram protagonizadas por bolsonaro, seguido de sua malta e entusiastas, que jamais poderão tolerar o fato de que ainda há os que, a despeito de todas as carências materiais, não renunciam às suas convicções, à sua dignidade, em benefício de migalhas. Esta é a estirpe dos trabalhadores nordestinos: gente de uma cana só; de antes quebrar que vergar. Sei disso muito bem, pois, apesar de terem sido poucas as vezes em que estive no Nordeste, para a minha inteira felicidade, o Nordeste sempre vem até mim.

Ainda bem menino, me comovi com o retrato de miséria e exploração que recolhi do naturalismo de Aluísio de Azevedo (1857-1913); com a compaixão e a solidariedade militantes que transbordam de cada uma das milhares de páginas escritas por Jorge Amado (1912-2001). Lembro-me de ter rido até chorar com a prosa e a poesia de Ariano Suassuna (1927-2014) e de chorar até rir com o realismo árido de Graciliano Ramos (1892-1953) – e se me perguntassem qual dos dois eu prefiro, eu responderia, de conformidade com a sabedoria salomônica, que, nesse caso, o melhor a se fazer é preferir os dois.

Devo confessar que só me encontrei com José Lins do Rego (1901-1957) há uns poucos anos, em atenção à sugestão de um querido amigo, mas que o atraso talvez tenha vindo a calhar, pois me permitiu apreender, de seu ciclo da cana-de-açúcar[i], a impecável representação literária do Brasil de Casa-Grande & Senzala (1933) – aos que não o leram, recomendo-o enfaticamente. E não poderia deixar de fazer menção honorária ao nome de Euclides da Cunha (1866-1909), que, obviamente, nada tinha de nordestino, mas nos legou Os Sertões (1902), um clássico imperecível, admiravelmente bem escrito e um tanto enigmático, ora pendendo ao romance, ora, ao ensaísmo.

Falando nisso, o Nordeste sempre veio a mim em forma de ensaio. Compartilhei das preocupações assustadoramente atuais de Joaquim Nabuco (1849-1910), uma ave rara entre os brasileiros: liberal puro-sangue, mas de extrema consciência social. Me deslumbrei com o estilo, com a abrangência temática e até com as contradições de Gilberto Freyre (1900-1987) – até hoje, um entre os tantos vícios que cultivo com o máximo prazer. A propósito, Vamireh Chacon (1934), um de seus maiores discípulos, é um de meus autores de cabeceira, seja por perpetuar o mais fino estilo do Mestre de Apipucos, seja por demonstrar – pasmem! – que também há brasilianistas brasileiros – e, diga-se de passagem, de uma cultura enciclopédica. E Câmara Cascudo (1898-1986), então? Sua obra é das mais instrutivas sobre o folclore, as lendas, os contos, as comidas, as bebidas, os gestos, enfim, sobre a história mesma de uma cultura que nos é imprescindível. E ainda hoje, quando visito a Escola de Serviço Social da UFRJ, tenho a estranha impressão de que trombarei com Carlos Nelson Coutinho (1943-2012), o baiano de Itabuna, que se fez universal pelas suas contribuições estético-críticas e teórico-políticas, ademais de seu incansável ofício de tradutor.

Não é o caso de prosseguirmos nessa linha, contemplando outras manifestações artísticas ou abordando autores específicos e suas respectivas teorias, pois isto seria contornar o substancial em favor de juízos adjetivos, aqui perfeitamente dispensáveis. Focalizemos o essencial.

Querem saber mesmo como o Nordeste sempre veio e sempre virá até mim? É pela amizade; pelos laços de afeto que construí no curso dos anos. Falo de gente que conheci em múltiplos espaços, especialmente na Universidade pública, no âmbito da pós-graduação, mas também de alguns alunos e alunas, que, com o passar do tempo, fizeram marca em minha vida. No fim das contas, é disso que se trata: os amigos, essa obra-prima da Natureza, nos provam, por a mais b, que, se não para conviver, que sentido haveria em viver? Em momentos incertos, como este que nos ameaça e nos sufoca, nós os reconhecemos e, com isso, reconhecemos também a nós mesmos. Sob este ângulo, somos todos uns analfabetos, já que não fomos doutrinados na gramática do ódio e do preconceito – e, como se sabe, cada um se comunica no idioma que representa, com maior expressividade, a sua própria cultura.

Se o caro leitor me indagasse, ao término de tanta divagação, o que diabos é o Nordeste, eu não saberia respondê-lo. Só o que me restaria é concluir pelo óbvio, fazendo-o recordar que o Nordeste jamais sucumbiu à disciplina das fronteiras topográficas, mostrando-se invariavelmente maior, muito maior, que o Brasil. Para o bolsonarismo, que odeia a tudo que não seja o próprio reflexo, o próprio eco e a própria sombra, o Nordeste é de dar medo; e o medo, claro está, é o combustível básico do ódio. Mas ser odiado pelo bolsonarismo é, antes de tudo, uma deferência, e é por isso que nordestino que se preze não comunga do bolsonarismo. Já se deu a devida resposta ao que se apresentava como “coragem da esperança”, mas que não passava de pura e simples covardia do oportunismo. Dia 30 é logo ali, e, uma vez mais, teremos uma dívida impagável para com os nossos companheiros nordestinos…

A Vitória, cantando, abre-nos a barreira;
A Liberdade guia os nossos passos.

[ii]

Notas de rodapé

[i] Não repitam o mau exemplo deste leitor, que começou por Fogo Morto, e sigam a ordem projetada pelo autor: Menino de Engenho (1932), Doidinho (1933), Banguê (1934), Usina (1936) e Fogo Morto (1943).

[ii] “La Victoire em chantant nous ouvre la barriere; / La Liberté guide nos pas.” São os versos de abertura da Canção de Partida (1794), de Marie-Joseph Chénier (1764-1811).

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