Rota 66 e a polícia que segue executando

Série policial baseada no livro-reportagem de Caco Barcellos estreou no último dia 27 de setembro.

No último dia 27 de setembro, estreou no streaming a série de oito capítulos “Rota 66”, estrelada pelo ator Humberto Carrão e baseada no livro-reportagem de Caco Barcellos.

A obra literária foi publicada no início da década de 90 e rendeu ao jornalista o Prêmio Jabuti na categoria Reportagem. Após uma intensa pesquisa, Barcellos nos traz inúmeros dados para demonstrar que em São Paulo, entre os anos de 1975 e 1992, policiais da Rota – Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar[1] – forjavam execuções, fazendo parecer com que as mortes de jovens decorriam de confrontos armados.

Barcellos começou a pesquisar quando chegou ao seu conhecimento o fato de que três jovens de classe média que furtavam um toca fitas e estavam armados, foram mortos ao entrar em confronto com a Rota. No livro, ao abordar o caso, Barcellos escreve: “eles não tinham o perfil do inimigo que a Rota costuma perseguir. Muito simples: são ricos”.

A partir daí, seguindo seu faro investigativo, Barcellos mergulhou em mais de 4.000 casos e chegou à seguinte conclusão: a polícia executa e tenta encobrir o banho de sangue.

O papel da mídia na cobertura de casos criminais

Não é de hoje que a mídia trata de forma diferente um caso a depender da qualidade do suspeito. Tanto no livro como na série, percebemos o auxílio da mídia para colocar os policiais assassinos no patamar de heróis que sacrificam suas vidas para combater o crime. A notícia dada por um programa de rádio da época foi a seguinte: “Três perigosos delinquentes foram mortos esta madrugada em tiroteio”.

Ao fazer uma rápida pesquisa em sites de busca, este padrão se repete: podemos constatar a diferença na cobertura da notícia. Quando o suspeito é de classe média e branco, a matéria o humaniza. No entanto, se é um jovem negro, morador de favela, é logo desumanizado. Isso acontece muito em casos que envolvem drogas ilícitas. Perceba a diferença nas duas manchetes: “Estudantes de medicina ‘mulas’ lucram com ‘droga gourmet’ vinda do exterior”[2] x “Traficante é preso com 1.2 kg de maconha em Santa Bárbara”[3].

É muito importante que se tenha uma imprensa compromissada em relatar os fatos e que não julgue de antemão o caso. Isso porque, de acordo com a nossa Constituição, ninguém pode ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. No entanto, na prática, não há um princípio da presunção de inocência. Parece que o indiciado/investigado/réu é quem deve provar sua inocência, ao total arrepio da garantia constitucional. Com isso, a mídia ajuda a polícia a, desde o início, fazer com que aquela versão seja a verdadeira.

Quanto vale a vida?

Como sabemos, não há pena de morte no Brasil (salvo em caso de guerra declarada, conforme artigo 5, XLVII, a CRFB) e em todos os casos pesquisados por Barcellos, a partir das provas reunidas, os policiais não estariam cobertos pelo manto da excludente de ilicitude que alegaram à época – a legítima defesa.

Qualquer pessoa com o mínimo de bom senso, a partir do estado dos veículos das vítimas e também de seus corpos, pode verificar que não houve legítima defesa ou excesso desta:

Basta contar os tiros que atingiram o carro para se concluir que a intenção dos PMs não era a de evitar a morte dos rapazes. Os dois para-brisas estão estilhaçados, os vidros da janela do motorista e o lateral traseiro também. São 21 marcas de bala, a maioria na parte superior do Fusca, o que indica a vontade de matar. Os ferimentos nos corpos são ainda mais reveladores. O sangue escorre por 23 perfurações de balas, a maior parte em regiões vitais, como o coração e a cabeça[4].

Atirou-se para matar, para executar e não para conter eventual injusta agressão. E isso ainda ocorre. O carro do músico Evaldo dos Santos foi metralhado com oitenta tiros. Ele estava com sua família, indo para um chá de bebê[5]. Policiais “confundem” Bíblia, marmita e guarda-chuva de homens negros com armas e os executam[6]. Primeiro atiram, depois verificam. São inúmeros os casos que rotineiramente acontecem nas periferias – e esta barbárie não pode ser normalizada.

Na maioria dos casos examinados por Barcellos, os policiais chegavam aos hospitais com corpos, alguns já em rigidez cadavérica (fenômeno que ocorre entre duas e quatro horas após a morte), o que demonstra a demora da viatura – e o interesse – em levar os supostamente “feridos” ao hospital.

Indignos de vida: a tentativa de justificar execuções

Em muitos dos casos pesquisados por Barcellos, atribui-se à vítima da letalidade policial uma qualidade negativa: tinha passagem pela polícia, era bandido, era vagabundo. Assim, temos o quadro: eles são os inimigos. A família das vítimas tenta, de toda forma, demonstrar a conduta ilibada de seu ente querido, muitas vezes em vão.

No entanto, ainda que fosse verdade o fato de serem bandidos, a partir do momento em que não estão em troca de tiros, mas sim em fuga ou inclusive já rendidos, não se deve disparar a arma. No entanto, na prática, policiais agem como se a vida daquela pessoa, por ser supostamente um bandido, nada valesse.

Medidas de políticos eleitos pelo povo legitimam esta barbárie, como a chamada “Gratificação faroeste”, instituída durante o governo de Marcelo Alencar no Rio de Janeiro, em 1995, que estabelecia uma premiação por bravura, para policiais envolvidos em ações policiais cujo desfecho normalmente era o homicídio de suspeitos. Desnecessário dizer que a gratificação aumentou a violência policial[7].

Palavra dos policiais e judiciário

Sergio Verani já dizia que o sistema judiciário corrobora com esta tese defensiva de legítima defesa, ao se agarrar aos elementos colhidos em sede de inquérito policial[8]. De fato, em diversos processos em que policiais prestam suas declarações em juízo – como, por exemplo, em crimes relacionados a drogas ilícitas – toma-se como verdade incontestável (por ser agente público) a narrativa de uma pessoa envolvida no caso – e que, portanto, não tem como ser imparcial.

O desembargador Marcelo Semer, durante seu doutoramento, realizou pesquisa em processos de tráfico de drogas e, após a leitura de oitocentas sentenças, pode concluir:

Desprezando a possibilidade de que os policiais poderiam estar interessados, como testemunhas, na legitimação de suas próprias condutas, um dos pontos essenciais para a valorização do depoimento é justamente a incompreensão dos motivos que os levassem a mentir[9].

Necropolítica

Ao assistir à série baseada em um livro escrito há trinta anos, que narra fatos reais que ocorreram em um passado não tão distante, percebemos que muita coisa infelizmente não mudou. A polícia segue executando jovens que, em sua maioria, são negros.

De acordo com o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o número de mortes por policiais de pessoas negras aumentou 5,8%. Entre 2020 e 2021, 84,1% de vítimas policiais eram negros, em sua maioria jovens[10].

A vítima da letalidade policial tem cor.

Notas de rodapé

[1] Inicialmente, a Rota foi criada em 1970 para combater assaltos a bancos praticados por guerrilheiros. O documento datado de 27 de janeiro de 1970, justifica assim a sua criação: “Como é do conhecimento geral, a denominada região da “Grande São Paulo” vem sendo alvo de vários grupos que aperfeiçoam seus métodos criminosos diuturnamente e praticam assaltos, saques e atentados, cada vez mais audaciosos. Necessário se faz que a polícia se modernize e se equipe para fazer frente a essa situação.” A Rota apoiaria as Rádio Patrulhas, no policiamento da área.

[2] https://correiodoestado.com.br/cidades/policia/estudantes-de-medicina-mulas-lucram-com-drogas-gourmet-vindas-do-e/400175/ Acesso em 12 out. 2022.

[3] https://tododia.com.br/cidades/santa-barbara-d-oeste/traficante-e-preso-com-1-2-kg-de-maconha-em-santa-barbaraAcesso em 12 out. 2022.

[4] BARCELLOS, Caco. Rota 66: A história da polícia que mata. 29 ed. São Paulo: Globo, 1997.

[5] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/militares-do-exercito-matam-musico-em-abordagem-na-zona-oeste-do-rio.shtml Acesso em 12 out. 2022.

[6] https://br.noticias.yahoo.com/biblia-guarda-chuva-marmita-relembre-o-que-policiais-ja-confundiram-com-armas-durante-operacoes-162900845.htmlAcesso em 12 out. 2022.

[7] A gratificação foi extinta em 1999. Para mais informações sobre ela e homicídios por “autos de resistência”, leia MISE, Michel. et al. Quando a polícia mata: homicídios por “autos de resistência no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: NECVU, Booklink. 2013.

[8] VERANI, Sergio. Assassinatos em nome da lei. Rio de Janeiro: Aldebarã. 1996.

[9] SEMER, Marcelo. Sentenciando tráfico: o papel dos juízes no grande encarceramento. São Paulo: Tirant. 2019, p. 191.

[10] https://forumseguranca.org.br/Acesso em 12 out. 2022.

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