São Tibira do Maranhão

Orgulho LGBTQIAP+ e resistência em um Brasil ainda colônia

Durante o período do Brasil colônia, diversas expedições aportavam no Brasil, gerando frutos: obras que tinham como objetivo transmitir as impressões que aqueles estrangeiros tiveram por aqui. Pouco depois da invasão portuguesa, por exemplo, em 1576, Gândavo publica História da Província de Santa Cruz, descrevendo nosso país como um local de clima ameno e receptivo, elogiando a natureza e iguarias. No entanto, ao retratar os indígenas (que, friso, aqui estavam e tiveram suas terras expropriadas, além de terem sido escravizados), o viajante critica seus costumes e os descreve como “atrevidos, sem crença na alma, vingativos, desonestos e dados à sensualidade”. Seriam desumanos, que viviam como animais[1]. Ficaram os europeus em choque com o a “diversidade e lascívia exacerbada”, certamente vinda do Diabo: andavam nus, eram polígamos e sodomitas[2].

Em 1613, Tibira, indígena do Maranhão foi executado com um tiro de canhão pelo crime de sodomia, com a anuência da Igreja Católica. O segundo registro de idêntica punição data de 1678, no Sergipe e sequer sabemos o nome da vítima. Sabe-se apenas que foi um homem negro, escravizado.

Já no Brasil império, já não mais sob a égide das Ordenações Filipinas em razão da independência do Brasil em relação a Portugal, temos a promulgação do Código Criminal de 1830, que deixa de criminalizar a chamada sodomia. No entanto, isso não quer dizer que não seria o relacionamento homossexual considerado prática “atentatória à moral e aos bons costumes” e severamente censurada. Os corpos continuam a ser controlados e, ao longo dos séculos, a perseguição, criminalização e desumanização de corpos LGBTQIAP+ só aumentou.

O primeiro Código Penal da República, datado de 1890, traz o título “Dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao rigor”. No século seguinte, em 1964, manifestações como a Marcha da Família com Deus pela Liberdade já anunciam os tempos sombrios que serão enfrentados pela população LGBTQIAP+ durante a ditadura[3]. Renan Quinalha, ao tratar deste período histórico, narra que a visão era de que seria pecado, falta de vergonha, anormalidade, degeneração e até doença. Até hoje, muitas pessoas ainda propagam isto, de forma totalmente lgbtfóbica. Nas redes sociais, presenciamos discursos de ódio que, certamente contribui para assassinatos e suicídios dentro da comunidade LGBTQIAP+. Eu penso que é importante que tenhamos consciência de que, de acordo com pesquisas realizadas em 2022, o Brasil é o país com o mais elevado número de pessoas LGBTQIAP+ assassinadas[4]. A cada menos de 30 horas, é assassinada uma pessoa simplesmente por sua orientação sexual, simplesmente por existir.

Aqui entra a importância da educação e do conhecimento. Inúmeras pessoas, inclusive que estão na mídia, debocham da sigla LGBTQIAP+. Em seu livro, que trata especificamente do período da ditadura, Renan Quinalha reflete que “a popularização da televisão como meio de comunicação em massa, e sobretudo a revolução sexual que se arrastou por toda a década de 1970 serviram de pretexto para alimentar um pânico moral em diversos setores da sociedade”[5].

No século XXI, em que presenciamos um avanço tecnológico enorme, com diversas redes sociais, plataformas de streaming e canais de televisão, ainda podemos presenciar discursos totalmente ignorantes (para dizer o mínimo). Patricia Abravanel, filha de Silvio Santos, ao apresentar um programa, referiu-se a essa população “LGBT…YGH”. Defendeu ainda o “concordar em discordar”, afinal “a gente pode ter opiniões diferentes”. No vídeo, o outro apresentador ainda fala, “a pessoa nasce assim” e ela insiste: “até isso é questionável”[6]. É só um exemplo de como é importante compreender o que significa cada sigla e de como precisamos ter letramento, de como você pode sim, ter diferentes opiniões sobre gostar ou não de um filme, por exemplo, mas não com relação a respeitar a diversidade, a existência e a resistência. Acredito ainda que, quem está na mídia não pode prestar um tipo de desserviço desses. Está ali para informar, para levar cultura e conhecimento e não propagar um discurso que nos remete ao Brasil colônia.

Em fala totalmente transfóbica, no dia internacional da mulher neste ano, o deputado Nicolas Ferreira coloca uma peruca e diz que “mulheres estão perdendo espaço para homens que se sentem mulher”[7]. Há cerca de um mês, o pastor André Valadão pregou que “Deus odeia o orgulho”. Atrás dele, um painel com a palavra orgulho colorida, remetendo à bandeira LGBTQIAP+. Seria preciso lembrar a ele que Deus é amor e uma pessoa que se diz religiosa, que diz seguir seus ensinamentos não deveria pregar o contrário? As condutas do deputado e do pastor tem algo em comum: são uma expressão da sociedade que faz com que, a cada dia, uma pessoa LGBTQIAP+ acorde sem saber se irá sofrer uma agressão apenas por existir.

E por falar em orgulho, junho é considerado o mês do orgulho. Isso porque, o dia 28 de junho de 1969, marca a série de manifestações da comunidade LGBTQIAP+ contra a invasão policial ao Bar Stone Inn, em Nova York, EUA. O episódio ficou conhecido como Rebelião de Stonewall. Quase 55 anos depois, ainda temos manifestações de ódio como as mencionadas acima. É por isso que a luta LGBTQIAP+ é de todas as pessoas.

Luiz Mott, em 2014, iniciou uma campanha de canonização de Tibira, para que seja considerado o primeiro mártir da homofobia no Brasil[8]: Termino com as palavras de Mott, que clama: “Celestial São Tibira do Maranhão, ora por este diabólico Brasil que a cada 26 horas mata cruelmente um sodomita!”[9]

Notas de rodapé

[1] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Nem preto, nem branco, muito pelo contrário: Cor e raça na sociabilidade brasileira. São Paulo: Claro Enigma, 2012. pp. 14-15.

[2] MOTT, Luiz. Dois crimes homofóbicos no Brasil colonial. In: MÜLLER, Angélica; DEL PRIORE, Mary (orgs.). História dos crimes e da violência no Brasil. São Paulo: Unesp, 2017. p. 40.

[3] QUINALHA, Renan. Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão à comunidade lgbt. São Paulo: Companhia das Letras, 2021. p. 22.

[4] Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/clp/noticias/brasil-e-o-pais-que-mais-mata-populacao-lgbtqia-clp-aprova-seminario-sobre-o-tema. Acesso em 07 jun. 2023.

[5] Op. cit., p. 30.

[6][6] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5Pbw0mZQQHg. Acesso em: 07 jun. 2023.

[7] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=YyAAxLkdLOo. Acesso em: 07 jun. 2023.

[8] Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/12/28/o-indio-executado-a-tiro-de-canhao-tido-como-primeiro-martir-da-homofobia-no-brasil.ghtml. Acesso em 07 jun. 2023.

[9] Op. cit., p. 63.

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