Uma crítica aos fundamentos bevilaquianos

Em 2019, o Instituto Carioca de Criminologia, dando mais uma mostra de sua missão histórica de divulgação criminológica, fez ressuscitar Criminologia e Direito – uma primorosa coletânea de textos de Clóvis Beviláqua (1859-1944), todos eles escritos na aurora da criminologia, e compilados, ainda em 1896, sob aquele título.

Em se tratando de autor de vulto, há que resistir ao impulso quase incontrolável de ceder a tentações biográficas. Poder-se-ia ambientá-lo na Viçosa do Ceará do século XIX, fantasiando sobre uma infância e adolescência repletas de biscoitos de polvilho, doces e geleias típicas, até que alcançasse a idade adequada a novas experiências, desfrutando de licores e cachaças. Poder-se-ia retroceder um tanto mais, de modo a contemplar seu avô, Ângelo Beviláqua – um italiano que, junto de seu irmão, salvou-se de um naufrágio na costa do Ceará e, apaixonando-se pelo Brasil, optou por fixar moradia em Fortaleza. Talvez falar de seu pai e do escândalo amoroso de que Clóvis foi fruto: filho de um padre que viveu em pecado com uma de suas pupilas. Mas por mais deleitosas que tais anedotas possam ser, o trabalho de expô-las pormenorizadamente é desnecessário, uma vez que já estão mais que documentadas[i].

Concentremo-nos, pois, em Criminologia e Direito – obra que o próprio autor enfatizou, entre as tantas que publicou, com a seguinte justificativa: “porque nela pôde meu espírito acentuar mais a sua individualidade”[ii]. Trata-se, de fato, de um texto de maturidade, em que a correção da prosa e a temperança do espírito – traços que, aliás, sempre o caracterizaram – confluíram para a estruturação de uma bela síntese crítica das principais tendências que, em criminologia, marcariam a época. Afastando-se da arrogância autoiludida e irascível de um Silvio Romero (1851-1914), bem como das excentricidades provincianas e pedantes de um Tobias Barreto[iii] (1839-1889), Beviláqua foi, aos poucos, galgando um lugar de repercussão nacional, à medida que o primeiro ia sendo ladeado e o segundo, que jamais extrapolou as redondezas de Escada, caía no mais completo esquecimento. Tem razão um ilustre recifense[iv]:

Clóvis Beviláqua representa a confluência das duas principais correntes ideológicas da ascendente burguesia de então – o positivismo e a Escola do Recife – e o ponto máximo em que, principalmente a segunda, consegue influir na organização social de seu tempo, deixando marcas que vêm até hoje.

Tobias Barreto

Refratário aos apetites monopolizadores da perspectiva naturalista de seu tempo, ainda que aderindo a muitas de suas proposições, Beviláqua defendeu o Direito Penal contra os arroubos das criminologias mais avançadas. Mantendo-se fiel às formulações de Jhering (1818-1892), encara o crime como um “fato social”; como uma “perturbação mais ou menos grave produzida na ordem social”, cuja análise não pode prescindir das lentes jurídico-penais, uma vez que o Direito Penal é, ele mesmo, a “antítese lógica”[v] do crime. Em suma[vi]:   

A ideia do crime constitui uma oppositio contraria à ideia do Direito. Se existe crime é porque existe direito, e a ideia subversiva de um é como que a sombra da ideia construtora do outro. Nasceram conjunta e simultaneamente, têm vindo a rolar engalfinhados um ao outro, através das idades, transformando-se muitas vezes, em repercussão recíproca, e, se o Direito já conseguiu dilatar consideravelmente seu campo de ação, não expulsou da sociedade nem jamais expulsará o elemento desorganizador que nela fermenta.  

Clóvis Beviláqua

“Não expulsou nem expulsará” – profetizou, acertadamente, o autor –, mas nem por isso se deveria deixar de tentar! E é justamente aqui que suas inclinações utilitaristas assumem o leme, e o levam para águas bem distintas daquelas em que navegava o kantianíssimo Tobias Barreto. Enquanto este último fazia apologia da função retributiva da pena[vii], Bevilaqua preferia investir na ideia de prevenção geral negativa[viii], que se lhe pareceu mais apropriada aos desenvolvimentos “científicos” da época.

Mas o que é mais encantador no livro, apesar de profundamente problemático, é o seu tratamento filosófico, a arquitetura que esboça para garantir a manutenção da unidade das ciências e, portanto, do conhecimento sobre a realidade. Entre seus pressupostos, a ontologia bevilaquiana vê o mundo como uma totalidade – uma totalidade acerca da qual cada ciência ou disciplina escreverá desde o ponto onde se ache, no conjunto dos conhecimentos humanos.

Beviláqua opôs-se frontalmente a todas as tendências fragmentadoras e reducionistas então correntes, fazendo-nos notar que o conhecimento emerge necessariamente de um “consenso entretecido por interdependências perfeitamente assinaláveis”. E mais ainda: da interação entre as várias disciplinas científicas existentes, cada uma concorrendo para a ampliação do estoque de conhecimentos humano, conclui-se que “cada qual recebe, de outras, os elementos de vida, e sobre elas também os transfunde”[ix]. Isto, contudo, não implica a anulação da hierarquização entre os diversos ramos do conhecimento, que haveriam de ser ordenados, do “pequeno para o grande”, e metodizados, “do particular para o geral”, desbordando-se, assim, “numa concentração harmônica de esferas”[x].

Observe-se que Beviláqua acerta perfeitamente em seu juízo sobre o caráter totalizante e mediado da realidade: seu equívoco foi o de se olvidar do seu caráter contraditório. A consequência de seu raciocínio – engenhoso, porém insuficiente – é a constituição artificial de uma totalidade naturalizada e amorfa, cega para a história. Tanto é assim que, ao exemplificar sua posição ontológica, bem como seus desdobramentos epistemológicos e metodológicos, a economia política é apresentada como o ramo do conhecimento dedicado ao estudo da produção e distribuição de riquezas; da circulação, especialmente propiciada pelo comércio; de seus desenvolvimentos e crises[xi]. Todavia, inexiste processo histórico concreto, nem uma única palavra é dedicada aos sucessivos modos de produção e sua gênese: todos os conceitos se lhe aparecem como algo dado e sempiterno, não havendo necessidade ou possibilidade de crítica radical.

De costas para o desenvolvimento histórico e contraditório do mundo em que vivia, caiu na mesma esparrela de seus colegas bacharelescos do Recife, que não tiveram a menor sensibilidade para as lutas socialistas emergentes. Eis a conclusão[xii]:

“O proton-pseudo, o pecado original do socialismo é querer nivelar as classes sociais, quando é certo é que da sua desigualdade, da diversidade de suas funções que resulta a harmonia e o progresso humano.”

Clóvis Beviláqua

E antes que se diga que era essa a tônica do momento; que o Brasil ainda era demasiado verde para os embates político-emancipatórios que, desde meados do século XIX, tomavam a Europa como um rastilho de pólvora, é bom lembrar que houve quem fugisse à voga a-histórica, indicando maior sensibilidade no exame do tema. Euclides da Cunha (1866-1909) – não aquele de Os Sertões (1902), e sim o de Contrastes e Confrontos (1907) –, contra quem a maioria dos criminólogos critiqueiros direciona as mais infantis afrontas, escreveu um belíssimo artigo, que valeria a pena resgatar.

Elogiando o rigor científico de Marx (1818-1883), resumiu aquilo que, a seu juízo, representava a ordem do capital[xiii]:

A fonte única da produção e do seu corolário imediato, o valor, é o trabalho. Nem a terra, nem as máquinas, nem o capital, mesmo coligados, as produzem sem o braço do operário. Daí uma conclusão irredutível: – a riqueza produzida deve pertencer toda aos que trabalham. E um conceito dedutivo: o capital é uma espoliação. Não se pode negar a segurança do raciocínio. (…) Põe-se de manifesto o traço injusto da organização econômica do nosso tempo.

Clóvis Beviláqua

Está certo que Euclides vinculou-se ao reformismo de Ferri (ainda socialista!) e Colajanni, afirmando-se convicto da inevitabilidade do socialismo. Contudo, aí sim temos algo perfeitamente compreensível, em face do estado das artes daquele período. O que permanece inegável, ainda hoje, é o seguinte: quem dá as costas à história e às suas contradições concretas sempre fracassa na análise. E é por isso que Bevilaqua merece ser lido e relido, porém com especial atenção às suas insuperáveis limitações teórico-analíticas.

Notas de rodapé

[i] Aos que se interessarem, confiram o documentário sobre Clóvis Beviláqua em Tempo e História, lançado em 15 de fevereiro de 2015. IN: https://youtu.be/gv2wHZYH__I (Acesso em 06/06/2023)

[ii] RIO, João do. O momento literário. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1994, p. 102.

[iii] Herr Barreto que, aliás, sempre teceu desinibidos elogios públicos ao talento de Beviláqua, porém, ao fim da vida, decidiu-se por revelar a Silvio Romero, na absoluta segurança da privacidade epistolar, aquilo que dele pensava: “Olha lá: o Clóvis, em 1882, escreveu uns artigos a meu respeito, cheios de elogios extraordinários. Quer saber qual é o meu juízo sobre ele? É o seguinte: não passa de um felicíssimo desfrutável, e o mais pretensioso da nova geração. A reputação intelectual desse moço foi uma parcela antecipada do patrimônio Freitas. Não se iluda; Clóvis não vale nada. Alguma coisa melhor que escreve é plagiada.” IN: BARRETO, Tobias. Estudos alemães. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: J. E. Solomon; Sergipe: Editora Diário Oficial, 2013, pp. 240-241.

[iv] CHACON, Vamireh. Formação das ciências sociais no Brasil: da Escola do Recife ao Código Civil. 2ª. Ed. Brasília: Paralelo 15; Brasília: LGE Editora; São Paulo: Fundação Editora da Unesp, 2008, p. 121.

[v] BEVILAQUA, Clovis. Criminologia e direito. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Revan: ICC, 2019, p. 61.

[vi] (Atualizei a redação para o português do acordo atual) IN: Ibid. p. 24.

[vii] Confira-se o meu “Tobias or not Tobias, ou: de como Zaffaroni caiu no canto das sereias”. IN: https://www.introcrim.com.br/tobias-or-not-tobias-ou-de-como-zaffaroni-caiu-no-canto-das-sereias/

[viii] BEVILAQUA, op. cit., pp. 26-27.

[ix] Ibid., p. 23.

[x] Ibid., p. 28.

[xi] Ibid., p. 23.

[xii] BEVILAQUA, citado em CHACON, op. cit., p. 126.

[xiii] CUNHA, Euclides da. Contrastes e confrontos. 1ª. Ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1975, p. 144.

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