Maquiavel: um realista infatigável

O republicanismo oculto n’O Príncipe

Consultando-se a galeria de aves raras do pensamento político, dificilmente se poderia identificar alguma que tenha sido tão difamada e caluniada quanto Nicolau Maquiavel (1469-1527), que passaria a representar, no imaginário popularesco, uma espécie de ave de rapina da politologia, o mais imoral entre os filósofos que se ocuparam da vida política[1]. Não fosse essa uma constatação tão flagrante quanto a circularidade do círculo, bastaria, ao cético, recorrer ao dicionário geral da língua, onde descobriria um sobrenome que, usurpado por seus detratores, foi metamorfoseado para compor um tolo acervo do maldizer[2], do qual o adjetivo “maquiavélico” é a mais gritante expressão. Isto posto, as linhas que seguem devem ser lidas como uma réplica à deturpação maquiavélica do opus maquiaveliano[3].

Alguns rudimentos biográficos

Maquiavel nasceu em Florença, aos 3 de maio de 1469, como o terceiro filho de um erudito jurista, que, apaixonado pela palavra escrita, costumava empenhar uma parcela considerável de seu pecúlio na aquisição de livros, de que resultou a estruturação de uma biblioteca particular das mais vultuosas para os padrões da época. Imerso, desde a mais tenra infância, em um ambiente tão estimulante à intelecção, o menino aprenderia a conviver prazerosamente com as grandes obras, encantando-se pelos escritos de Dante (1265-1321) e de Petrarca (1304-1374).

No que respeita aos seus anos de juventude, os dados disponíveis são escassíssimos. Não obstante, sabe-se que, ali pelos doze anos de idade, o rapazinho passou a ser instruído por Paolo da Ronciglione[4], um eminente preceptor, responsável pela formação dos mais distintos humanistas, donde é possível concluir que sua educação se tenha dado, desde o princípio, nos mais altos níveis de refinamento intelectual.

Afinal, não é por acaso que, antes mesmo de chegar à casa dos trinta anos, Maquiavel tenha sido nomeado para ocupar o cargo de Segundo Chanceler da República de Florença: se é bem verdade que o jovem carecia da experiência prático-política imprescindível ao exercício de suas funções, a convocação deve ter sido motivada por seus elevados atributos mentais. Estes, ao que tudo indica, eram de encher os olhos, pois, decorrido apenas um mês desde a nomeação, Maquiavel era promovido a Secretário dos Dez[5] (o comitê de guerra florentino).

A década e meia seguinte (1498-1512) foi de um extraordinário acúmulo empírico, fazendo emergir e sedimentar toda a experiência política que lhe faltara: na intensa atividade diplomática – regada a missões estrangeiras –, Maquiavel exercitou ao máximo suas capacidades, mediando conflitos e ponderando questões de ordem prática, convivendo, tête-à-tête, com as figuras mais imponentes de seu tempo.

Ocorre que a República florentina, uma recém-nascida, teve vida curta. Formada em 1794, em decorrência da expulsão da família Medici e de seus apoiadores, seu ocaso se deu em 1º de setembro de 1512, data em que as tropas espanholas marcharam por Florença, restabelecendo o controle dos Medici sobre a região. Aos 7 de novembro do mesmo ano chegava ao fim o mandato de Maquiavel – um dos poucos funcionários cassados pelo clã de mecenas. Em pouco tempo a exoneração assumiria contornos criminais: falsamente acusado de participar em uma conspiração para a derrubada da família Medici, Maquiavel foi preso em fevereiro de 1513 e submetido à tortura pelo strappado[6]. Seu tormento durou 22 dias, até que foi liberado, retirando-se, imediatamente, para uma propriedade de seus familiares, em Sant’Andrea in Percussina, próxima ao sul de Florença. 

Consta que a derrocada feriu-lhe na alma, porém, nem de longe, foi suficiente para imobilizá-lo intelectualmente – antes, valeu-lhe de estímulo producente. Reagindo aos dissabores do isolamento forçado, escreveu tanto O Príncipe quanto os Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, os quais,apesar de terem sido publicados postumamente, bastaram para garantir-lhe o ingresso no panteão da filosofia política.

Em todo caso, alguns de seus amigos não o esqueceram, e valeram-se do prestígio de que gozavam para interceder por ele junto aos Medici. Tais esforços parecem ter sido exitosos, pois, em 1520, Maquiavel faria um retorno tímido à cena política, sendo enviado para uma missão diplomática em Lucca. Ao término da viagem, nascem dois novos livros: A Vida de Castruccio Castracani e Arte da Guerra. O primeiro despertou o interesse do cardeal Giulio de Medici[7] (1478-1534), que não apenas ofereceu-lhe um cargo na Universidade de Florença, como encomendou-lhe as Histórias Florentinas (concluídas em 1525); o segundo foi seu único grande texto em prosa publicado em vida.

Maquiavel jamais logrou recuperar a antiga posição. Faleceu aos 21 de junho de 1527, e repousa, ainda hoje, na basílica florentina de Santa Croce.

O interesse do príncipe

Cerca de quinhentos anos se passaram desde a redação (1513-1514) e publicação (1532) d’O Príncipe, que permanece, até hoje, de leitura obrigatória a todos que se interessem por filosofia política. Como era de se esperar, algumas das questões abordadas já não nos dizem muito, porém, naquilo que lhe é mais essencial, as suas cores mais vivas, o livro não empalideceu com o avançar dos séculos. Por quê?

No século XVI, a escritura de obras de aconselhamento para príncipes não representava, de fato, a menor inovação. Contudo, naquilo que concerne ao conteúdo da obra, a empresa maquiaveliana é de uma formidável originalidade – e isso por, pelo menos, três razões: irreverência, pragmatismo e realismo.

Encabeçado por uma Carta Dedicatória a Lorenzo de Medici (1492-1519), o tom de Maquiavel, apesar de respeitoso e sempre elegante, não é reverencial ou submisso. Logo à partida ele assume uma postura claramente professoral, própria do especialista – a quem seria preferível ouvir, caso haja interesse em manter-se no poder[8]:

“(…) Assim como os que desenham as paisagens se colocam embaixo, na planície, para considerar a natureza dos montes e dos lugares elevados, e, para considerar a forma dos lugares baixos, colocam-se no alto, em cima dos montes, para conhecer bem a natureza dos povos, é preciso ser príncipe, e, para conhecer bem a natureza dos príncipes, convém ser povo”.

Nicolau Maquiavel

As considerações maquiavelianas são eminentemente pragmáticas, menoscabando a velha convenção social que, desde os clássicos, firmara uma rígida vinculação entre a bondade moral e a autoridade legítima. Para Maquiavel, esse escolasticismo é puramente retórico, completamente descolado da realidade concreta. Em seu vocabulário, autoridade e poder são essencialmente iguais, de sorte que o apego irrestrito às virtudes morais – sejam elas quais forem – é invariavelmente conducente à perda do poder. “Por isso é preciso que o príncipe aprenda, caso queira manter-se no poder, a não ser bom e a valer-se disso segundo a necessidade.”[9]

Inaugurando aquilo a que hoje chamamos realismo político, Maquiavel afirma que o príncipe deve se ater a uma – e somente uma – preocupação fundamental: manter o estado[10] (mantenere lo stato). Tendo isso em vista, é imperativo compreender, de uma vez por todas, a discrepância entre os reinos do ser e do dever ser: “(…) a distância entre o como se vive e o como se deveria viver é tão grande que quem deixa o que se faz pelo que se deveria fazer contribui rapidamente para a própria ruína e compromete sua preservação”[11]. Em suma: é pragmático (e realista) o príncipe que, para manter-se no poder, entende que, por vezes, é necessário agir imoralmente. 

Atentemos à passagem disposta no capítulo XII[12]:

“Os principais fundamentos de todos os estados, tanto dos novos quanto dos antigos  mistos, são as boas leis e as boas armas; e como não pode haver boas leis onde não houver boas armas – e onde há boas armas convém que haja boas leis –, deixarei de parte o tratamento das leis e falarei das armas.”

Nicolau Maquiavel

A passagem ilustra com a máxima nitidez o realpolitiker que há em Maquiavel: pode-se elaborar a lei mais perfeita do mundo, portadora das mais justas aspirações, mas, em não havendo capacidades concretas de obrigar o seu cumprimento, ela não passa de um pedaço de papel, de um relato das aspirações estatais[13]. A coerção é a parteira da legalidade.

Virtù e fortuna: uma tensão essencial

Como, para o príncipe, o poder é o objetivo da política, as virtudes de que fala Maquiavel não são aquelas recomendadas e propagadas pela tradição escolástica, e sim aquelas que contribuem, efetivamente, para a manutenção do estado. Na vida terrena, enfrentada pelos que mantêm os pés no chão, sabe-se que as circunstâncias mudam, para o bem e para o mal, de modo que só se mostrará virtuoso – na acepção maquiaveliana – o príncipe que tiver virtù; que for capaz de reagir – e, de preferência, se antecipar – às reviravoltas da fortuna.

De fato, é possível ser bafejado pela fortuna, mas um príncipe engenhoso não cai na ingenuidade de acreditar que as circunstâncias lhe serão sempre favoráveis. É possível ter sorte, mas depositar o próprio futuro na esperança de que “bons ventos virão” é de uma irracionalidade tamanha, que certamente pavimentará o caminho para a própria ruína[14]. Em certa medida, a fortuna é inexorável, mas a virtù está, em parte, no “fazer a própria sorte”; no aproveitar-se das ocasiões e das oportunidades. Tratando de príncipes engenhosos, diz Maquiavel[15]:

“Examinando suas ações e suas vidas, vê-se que eles não tiveram da fortuna outra coisa senão a ocasião, a qual lhes forneceu matéria para moldá-la segundo a forma que lhes pareceu melhor; e, sem essa ocasião, a virtude de seus espíritos se extinguiria, assim como, sem a virtude, a ocasião teria sido vã.”

Nicolau Maquiavel

Pesquisando as proeminentes lideranças do passado – suas ascensões e quedas –, Maquiavel nota, para seu próprio deleite, que jamais houve uma autocrítica dos derrotados: todos, invariavelmente, optaram por culpar a própria fortuna[16]. Sua resposta foi implacável: o problema é que não tinham virtù. Governar é uma arte, e não um jogo de dados.

A verdade sobre O Príncipe

Salientou-se que o realismo político de Maquiavel não deve ser confundido com apologia ao principado, mas a leitura exclusiva e descontextualizada deste único livro costuma render interpretações truncadas. Nesse sentido, recomenda-se avançar; fazer um esforço intelectual, com vistas a apreender aquele que foi, indiscutivelmente, o seu magnum opus: Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio, onde se encontra o Maquiavel republicano. Da leitura dessa grande obra, retorna-se ao livro de aconselhamento com uma nova perspectiva, atenta à complexidade e ao gênio maquiaveliano. Diderot (1743-1784) o enxergou com maestria[17]:

“Quando Maquiavel escreveu seu tratado do príncipe, é como se ele dissesse aos seus concidadãos: ‘leiam bem esta obra. Se alguma vez aceitarem um senhor, ele será tal como o descrevo; eis a besta feroz à qual vós vos entregareis’. Assim, se seus contemporâneos ignoraram seu objetivo, a culpa é deles.

Diderot

E também Rousseau (1712-1778)[18], com quem podemos concluir, identificou seu espírito decisivamente republicano: “Fingindo dar lições aos reis, ele as deu, e grandes, aos povos. O príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos.”

Onorate l’altissimo filosofo!

Notas de rodapé

[1] Acusando-o de praticar um gangsterismo sistemático, Leo Strauss (1899-1973), por exemplo, cedeu à velha compulsão caricaturesca e, desconsiderando a nítida vocação republicana de Maquiavel, optou por etiquetá-lo, infantilmente, de “professor do mal”. IN: STRAUSS, Leo. Thoughts on Machiavelli. Illinois: The Free Press, 1958, p. 9.

[2] No Dicionário Aurélio, encontram-se as seguintes entradas: maquiavelice, maquiavelismo, maquiavelista e maquiavelizar. Cf.: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 5ª. Ed. Curitiba: Editora Positivo, 2010, p. 1335.

[3] De agora em diante, sempre que me referir às ideias esposadas por maquiavel, empregarei o adjetivo “maquiaveliano”.

[4] SKINNER, Quentin. Machiavelli: a very short introduction. 2ª. Ed. Oxford: Oxford University Press, 2019, p. 5

[5] Ibidem, p. 6.

[6] Trata-se de um método de tortura em que as mãos da vítima são amarradas junto às costas, sendo posteriormente içada, o que tende a provocar o deslocamento dos ombros.

[7] Aos 19 de novembro de 1523, Giulio alçaria a posição de Sumo Pontífice, sendo entronizado, aos 26 de novembro do mesmo ano, como Papa Clemente VII (1523-1534).

[8] MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad.: Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 46.

[9] Ibidem, pp. 97-98.

[10] Uma pequena nota etimológica: por “manter o estado”, Maquiavel se refere tanto ao aparato de governo e suas instituições quanto ao próprio estado ou condição principesca. Entende-se muito bem a distinção, pois, ainda hoje, é perfeitamente possível que um líder perca sua posição sem que, com isso, o Estado colapse. Todavia, o raciocínio maquiaveliano, que ainda não estabelece uma nítida diferenciação entre a “cabeça” e a “coroa”, é ilustrativo do período de transição entre o pré-moderno e o moderno propriamente dito.

[11] Ibidem, p. 97.

[12] Ibidem, p. 86.

[13] A posição é realista, e não apologética: “Também deve ser do conhecimento geral que existem duas matrizes de combate: uma, por meio das leis; outra, pelo uso da força. A primeira é própria dos homens; a segunda, dos animais. Contudo, como frequentemente a primeira não basta, convém recorrer à segunda: por isso um príncipe precisa saber valer-se do animal e do homem. IN: Ibidem, pp. 104-105.

[14] “(…) aquele que menos se baseou na fortuna se manteve por mais tempo.” IN: Ibidem, p. 62.

[15] Ibidem, p. 63.

[16] Ibidem, cap. XXIV.

[17] DIDEROT, Denis. Maquiavelismo. IN: DIDEROT, Denis; D’ALEMBERT, Jean le Rond. Enciclopédia, ou Dicionário razoado das ciências, das artes e dos ofícios, vol. 4: política. Trad.: Maria das Graças de Souza, et. al. São Paulo: Editora Unesp, 2015, p. 231.

[18] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. Trad.: Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 127

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